domingo, 14 de abril de 2013

Outubro de 1977, 3

1) Derrida insiste no caráter fantasmático e espectral dos sapatos de van Gogh. Eles oscilam, no entanto, entre uma espectralidade da presença e outra da ausência, ou ainda, o sapato como o próprio espectro (em seu abandono, em sua materialidade literalmente vazia) ou o sapato como indício de um espectro ausente, externo (o sapato então como o resto da espectralidade, como um limiar ou umbral no qual se fecha o visível). 
2) Talvez seja possível ampliar esse campo de reflexão em direção a uma outra imagem, feita setenta anos depois. Talvez seja possível incluir a desoladora imagem da última caminhada de Robert Walser, feita no dia de Natal de 1956. As marcas dos sapatos na neve, o rastro da progressão do corpo até o ponto em que tombou, a insolúvel ambivalência entre a presença e a ausência. A imagem de Walser atualiza tanto os aspectos contraditórios da espectralidade quanto a vocação do artista como peregrino - elementos que já estão nos sapatos de van Gogh. Sebald já deu conta dessa tensão temporal que percorre a imagem dos passos de Walser, mas sem indicar diretamente que essa talvez seja a imagem mais emblemática da própria obra de Walser e de sua postura como artista: uma presença menor, subalterna, em baixa frequência com relação ao mundo, ao exterior (termos semelhantes àqueles que utiliza Meyer Schapiro em seu texto sobre os sapatos de van Gogh).
3) Derrida fala de Schapiro como um "detetive" - Marshall Berman, que talvez tenha visto Derrida em 1977, em seu ensaio de 1994 sobre Schapiro (incluído em Aventuras no marxismo), vai além e o chama de "detetive ontológico" -, um detetive que procura nos rastros dos quadros de van Gogh as provas que atestam o crime de Heidegger, o crime de tomar o "célebre quadro" como um exemplo solto, alheio ao contexto do artista. Em Walser, por outro lado, não um crime, mas uma cena de morte, de abandono - e os rastros presentes na cena de Walser não levam ao futuro (à interpretação de Heidegger, no caso da "investigação" de Schapiro), mas em direção ao passado, a uma leitura retrospectiva da vida e da obra de Walser a partir dessa cena tão ambivalente e desconfortável, ao mesmo tempo que tão emblemática e poética.
 

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