sábado, 6 de abril de 2013

Outubro de 1977

Tamancos, 1888
1) Em outubro de 1977, na Universidade Columbia, em Nova York, convidado por Edward Said, Jacques Derrida oferece um seminário sobre Heidegger, sobre a origem da obra de arte, sobre van Gogh e suas imagens dos sapatos. A versão final, a versão escrita, mostra uma estrutura de diálogo - marca com travessões as interferências de uma voz externa, uma voz alheia emulada por Derrida e sobreposta ao seu próprio discurso. Derrida, muito teatralmente, divide a si diante dos outros e enuncia essa divisão na cadência da voz, no ritmo que utiliza para interpelar a si próprio. Meyer Schapiro está na plateia - van Gogh lhe diz respeito muito diretamente.
2) Em 1968, Schapiro publica uma "Nota sobre Heidegger e van Gogh", ou ainda, a natureza morta como objeto pessoal. Argumenta que Heidegger estava errado, em 1935, ao afirmar que os sapatos pintados por van Gogh pertenciam (ou representavam, ou exemplificavam) a um camponês - Schapiro diz que não, os sapatos eram de van Gogh, os sapatos eram van Gogh. E diante de Schapiro é justamente esse texto que Derrida disseca. "Dois impulsos complementares de restituir a pintura de van Gogh à verdade", escreve Derrida sobre Heidegger e Schapiro. O primeiro é vago, o segundo é específico; para Heidegger, a imagem é um exemplo, para Schapiro, cada quadro deve ser considerado em seu contexto; sapatos são sapatos, botas são botas e tamancos são tamancos.
3) Noventa anos antes da conferência de Derrida, em Arles, van Gogh dava sua única contribuição, a única pista: escreve no verso da tela: Vincent, 87. Para Schapiro, os sapatos eram de van Gogh, mostravam sua inquietude, seu desconforto. Para Heidegger, os sapatos diziam respeito ao camponês, à terra, ao trabalho e à técnica. Para Derrida, nem um nem outro, ou ainda, ambos simultaneamente. Como em César Aira, que se faz monja e menina, o van Gogh de Derrida se faz camponês, se faz girassol, se faz corvo e se faz homem e mulher. Van Gogh, argumenta Derrida, se faz e se mostra pelo avesso, pela sola, pelo externo que se dobra no interno, pelo cordão que faz o percurso e sobrepõe as zonas de contato. Se Schapiro dizia que Heidegger não via o quadro de van Gogh (sua especificidade, seus detalhes), Derrida faz ver a Schapiro (diante dele) os elementos que ainda assim, mesmo depois de sua intervenção, permaneceram invisíveis.
Sapatos, 1888
 

2 comentários:

  1. Bom ler isso agora! É interessante notar como a "desconstrução" derridiana torna-se um processo desvelador que nunca cessa de "descobrir" pormenores que até então passavam despercebidos aos olhos de seus leitores... Grata! Josefina

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