Tamancos, 1888 |
1) Em outubro de 1977, na Universidade Columbia, em Nova York, convidado por Edward Said, Jacques Derrida oferece um seminário sobre Heidegger, sobre a origem da obra de arte, sobre van Gogh e suas imagens dos sapatos. A versão final, a versão escrita, mostra uma estrutura de diálogo - marca com travessões as interferências de uma voz externa, uma voz alheia emulada por Derrida e sobreposta ao seu próprio discurso. Derrida, muito teatralmente, divide a si diante dos outros e enuncia essa divisão na cadência da voz, no ritmo que utiliza para interpelar a si próprio. Meyer Schapiro está na plateia - van Gogh lhe diz respeito muito diretamente.
2) Em 1968, Schapiro publica uma "Nota sobre Heidegger e van Gogh", ou ainda, a natureza morta como objeto pessoal. Argumenta que Heidegger estava errado, em 1935, ao afirmar que os sapatos pintados por van Gogh pertenciam (ou representavam, ou exemplificavam) a um camponês - Schapiro diz que não, os sapatos eram de van Gogh, os sapatos eram van Gogh. E diante de Schapiro é justamente esse texto que Derrida disseca. "Dois impulsos complementares de restituir a pintura de van Gogh à verdade", escreve Derrida sobre Heidegger e Schapiro. O primeiro é vago, o segundo é específico; para Heidegger, a imagem é um exemplo, para Schapiro, cada quadro deve ser considerado em seu contexto; sapatos são sapatos, botas são botas e tamancos são tamancos.
3) Noventa anos antes da conferência de Derrida, em Arles, van Gogh dava sua única contribuição, a única pista: escreve no verso da tela: Vincent, 87. Para Schapiro, os sapatos eram de van Gogh, mostravam sua inquietude, seu desconforto. Para Heidegger, os sapatos diziam respeito ao camponês, à terra, ao trabalho e à técnica. Para Derrida, nem um nem outro, ou ainda, ambos simultaneamente. Como em César Aira, que se faz monja e menina, o van Gogh de Derrida se faz camponês, se faz girassol, se faz corvo e se faz homem e mulher. Van Gogh, argumenta Derrida, se faz e se mostra pelo avesso, pela sola, pelo externo que se dobra no interno, pelo cordão que faz o percurso e sobrepõe as zonas de contato. Se Schapiro dizia que Heidegger não via o quadro de van Gogh (sua especificidade, seus detalhes), Derrida faz ver a Schapiro (diante dele) os elementos que ainda assim, mesmo depois de sua intervenção, permaneceram invisíveis.
Sapatos, 1888 |
Bom ler isso agora! É interessante notar como a "desconstrução" derridiana torna-se um processo desvelador que nunca cessa de "descobrir" pormenores que até então passavam despercebidos aos olhos de seus leitores... Grata! Josefina
ResponderExcluirIsso aí, Josie, obrigado pelo comentário.
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