1) Sándor Márai ocupa um bom número de páginas com a história do médico do campo de concentração (que comecei a comentar aqui) - algo sintomático se pensarmos na extensão do livro em questão, Libertação, que não ultrapassa as 150 páginas. Talvez tenha ele próprio escutado as histórias sobre os médicos dos campos quando estava escondido nos porões de Budapeste durante a guerra - e talvez as imagens tenham colado irremediavelmente em sua mente (como a imagem daquele jovem esquizofrênico que jamais abandonou Foucault).
2) A mulher que está no porão com Erzsébet continua a falar sobre o médico, o médico que "apenas olhava, atento, com os olhos azuis, com o olhar de quem conhecia perfeitamente o que via". O médico, diz ela, "conhecia o corpo humano como poucos", "tinha visto centenas de milhares de pessoas nos anos anteriores, quem sabe um milhão". E nesse ponto a mulher atinge uma comparação curiosa: "ele era como um joalheiro, entende?... Talvez somente um joalheiro saiba olhar para o material e ver de imediato, sem nenhum instrumento, se ele é verdadeiro ou falso, de brilho vulgar ou nobre. Era assim que o médico conhecia o corpo humano. Olhava para alguém e logo sabia se era saudável ou doente, se recuperaria a saúde em menos de oito dias ou em mais tempo" (Libertação, tradução de Paulo Schiller, p. 83).
3) A proliferação de uma metáfora: ele era como um joalheiro. Aquele que separa o verdadeiro do falso, que estabelece a hierarquia - e a ironia involuntária da mulher ao indicar um ofício tão judaico. E ainda assim a esperança - talvez também involuntária - da mulher: posso ainda ser uma pedra bruta, pode ainda restar um pouco de energia em mim, somente o tanto necessário para que o médico, ao prestar atenção, ao dedicar seu olhar ao corpo da mulher, decida, finalmente, que ela está apta a continuar, que ela tem condições de, vá lá, viver mais alguns dias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário