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Era verdade que o carnaval começara, flautistas espreitavam os convidados na taverna, na parede amarela do Estrela Dourada vi um aviso que anunciava um baile, mas aquelas meninas estavam bem-humoradas como se viessem diretamente da folia medieval em que todos podiam enlouquecer por um dia na cidade murada. Em tempos assim, concebiam-se as crianças que se transformariam nos loucos da cidade, em comediantes de roupas coloridas ou ladrões de rosto injetado; na terra, o vinho se misturava ao sangue dos soldados e cidadãos - as pobres mulheres não sabiam que depois de nove ciclos lunares trariam ao mundo basiliscos terríveis ou gêmeos?Gyula Krúdy, O companheiro de viagem, p. 51.
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De novo a Lua: "nove ciclos lunares" e um resultado monstruoso. De novo a Lua participando das bestialidades engendradas na Terra. Mas o interessante é esse apelo constante de Krúdy ao arcaico. A Idade Média é recorrente em O companheiro de viagem, talvez na intenção de mostrar que os homens continuam caindo sob o jugo dos mesmos prazeres baixos e indecências. Krúdy preza muito sua experiência subterrânea, dá imenso valor a tudo que fez de desviante e perturbante. Sua prosa não está sempre lá, como em Sade ou Bataille, mas funciona aos mergulhos.
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Intriga especialmente essa "folia medieval", esse dia no qual tudo é permitido e as pessoas perdem o controle de seus corpos no interior da "cidade murada". Nessa breve passagem, que não envolve nenhuma história, nenhum caso ou evento ocorrido durante a "folia", Krúdy condensa múltiplos tempos, todos cheios de arestas e todos difíceis de digerir. O arcaico permanece no olhar das meninas que circulam pelas vielas, permanece no desejo do bêbado que espreita esses corpos, atento ao mínimo deslize. É a união dos rituais de fertilidade e de perambulação mágica que Carlo Ginzburg analisa em História noturna com os sistemas de sinalização e tipificação da loucura que Foucault sinaliza em Os anormais: "em tempos assim, concebiam-se as crianças que se transformariam nos loucos da cidade".
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