domingo, 9 de janeiro de 2011

Alice Munro e as razões domésticas

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Alice Munro disse que iria parar de escrever. Durante seis meses ela tentou, saiu para almoçar com as amigas, dedicou-se ao jardim, plantou novas flores, frequentou e organizou eventos de caridade. Não deu certo. Alice Munro voltou a escrever, dizendo que não poderia fazer outra coisa, não poderia ter uma vida normal. Munro escreve desde a adolescência. Com vinte e poucos anos, já casada, durante a década de 1950, os filhos começaram a chegar. Dois bebês em casa, escrevia durante o sono das crianças. Como conciliar a atividade de mãe e de escritora?, ela se pergunta. Para mim não havia opção, ela diz. Sentia que tinha que lutar por esse espaço próprio, no qual não era nem mulher, nem mãe. Talvez por isso os contos duros, por vezes intransigentes em sua acuidade. Pelo que sei da vida, ela é sempre dura. Seu sonho de adolescente era ser romancista, escrever como Joyce. Com a chegada dos filhos, contudo, o tempo tornou-se limitado e muito precioso. Era preciso colocar tudo no papel antes que eles acordassem, entre uma tarefa e outra. O conto surgiu para Alice Munro a partir desse cenário doméstico, desse cenário de contingências cotidianas. Pensei que, com meus filhos grandes, tendo mais tempo para escrever, poderia, finalmente, me dedicar aos romances. Mas não foi o que aconteceu. Foi com o conto que aprendi a escrever. É assim que eu faço. Como uma pedra que vai adquirindo sua forma (perfeita) e seu aspecto (liso, irrepetível) ao longo dos anos, ao custo do esforço indiferente da água. Como aquelas imagens nas entradas das igrejas, cujos pés estão gastos de tantos dedos fiéis que, passando por ali, completam a súplica com um gesto, tocando a pedra. Como uma boca torta pelo cachimbo. É fascinante que algo tão luminoso e esteticamente potente, como os contos de Munro, tenha nascido da fuga doméstica, do exercício auto-imposto de um alheamento seletivo, da abstração com tempo contado. Sei que sou feliz quando tenho uma ideia e posso trabalhá-la de forma estruturada, e sei que não sou muito boa quando estou de férias ou de bobeira em casa.
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2 comentários:

  1. e o quê, exatamente, ela diz no tratamento desse espaço doméstico? li apenas o conto Runaway (da mulher que mora numa 'mobile home') dela e, pelo que me consta, o tratamento não é dos melhores.

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  2. O tratamento é sempre dos piores. Há inclusive um conto em que o marido mata os filhos, vai preso e a mulher ainda o visita na prisão. O conto é justamente sobre a preparação para esse encontro.

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