quinta-feira, 6 de maio de 2010

Um homem que dorme

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O homem que dorme no livro de Georges Perec vive em um quarto minúsculo, com alguns livros que já leu e releu, duas camisas e algumas meias. Perec faz questão de inventariar tudo que passa pelas mãos desse homem – assim como esse mesmo homem faz questão de inventariar tudo que vê, todos os lugares pelos quais passa, tudo que come. Desta forma, fica impossível não relacionar Perec e seu homem que dorme, jovem estudante de sociologia, solitário, estranho, indiferente notívago.

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O quarto é fundamental, o local que sempre retorna, o lugar do sono. É como o quarto de Raskolnikov, diminuto, delirante. Outras figuras desfilam sobrepostas ao ambiente de Perec, o ambiente em que o homem não apenas dorme, mas arquiteta seu progressivo desligamento do mundo): o Emmanuel Bove de Meus amigos e o Bove de Pasavento, de Vila-Matas, deslizando indiferente pela grandiosidade de André Gide, vizinho do andar de cima na Rue Vaneau; Duchamp e sua penúria autoimposta, em Paris, em Nova York; o quarto de Hölderlin e de sua loucura.

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O homem de Perec circula por Paris, entrando nos cafés, nos cinemas, nas Passagens, como faz Oliveira em Rayuela, ambos descobrindo espetáculos espontâneos que nunca mais se repetirão (a mesma mobilidade urbana de Os lados do círculo, de Amílcar Bettega Barbosa, não por acaso um morador de Paris). Há alguma coisa no homem que dorme de Perec que o afasta e o aproxima dos real-visceralistas de Bolaño:

1) Perec: o homem que dorme, logo no início do livro, abandona seus estudos e seus colegas na universidade, seguindo adiante por conta própria, tornando seu vocabulário e seu trato social cada vez mais rarefeitos. Seu mundo está dentro de seu crânio, como na cenografia de Fim de Partida de Beckett, e sua passagem pela geografia de Paris é autofágica, solipsista, absorvida.

2) Bolaño: os real-visceralistas, também vagabundos, também estudantes formais relapsos, que percorrem a Cidade do México tão delirantemente quanto o homem que dorme, só existem a partir do diálogo, da troca intensa de ideias, mesquinharias e teorias da conspiração. Abandonaram a universidade conhecida para fundar uma universidade desconhecida no interior dos cafés e nas esquinas – no deserto, nos subúrbios. A essência do real-visceralista é ler seus poemas em voz alta, esperando pelo próximo.

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A questão, surpreendentemente travestida de novas roupagens e presente em textos aparentemente distantes, é da mesma família daquela envolvida no embate entre diálogo e monólogo que Harold Bloom vê nascer no contato de Shakespeare e Cervantes. A partir disso ele traça toda uma linhagem: de Cervantes, do Quixote e de Sancho Pança sai o diálogo, a troca, a narrativa que se desenvolve a partir da articulação de diferenças; de Shakespeare (com seus pensamentos em voz alta e suas ruminações subjetivas) sai a escola auto-centrada, autorreflexiva.
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