quarta-feira, 5 de maio de 2010

A terceira parte de Dublinesca

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A esposa de Riba, Celia, funciona como um contraponto permanente ao literário – é quase como um superego. No fim do livro Riba diz saber que a mulher nunca se importou com os autores que o marido editava e que passavam a noite bebendo quando apareciam para jantar (Amis, Houellebecq, Hobbs Derek, são alguns dos nomes citados). Celia vira budista no meio do livro, o que parece lembrar a fixação que Vila-Matas tem naquela história que conta Walter Benjamin sobre a convenção de monges budistas, que deixavam sempre a porta entreaberta de seus quartos no hotel.
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É realmente um livro complicado de deglutir. Talvez eu estivesse esperando uma mudança, é claro, mas talvez uma guinada ainda mais forte ao completamente literário. Quando o estranho aparece (seguindo a indicação de Joyce na cena do cemitério, e a indicação de Nabokov do estranho ser o autor) e reaparece no livro, já no fim da segunda parte, eu pensei: “Pronto, agora na terceira parte vai aparecer o Vila-Matas, ele vai interromper a história, bater na porta do editor, como o narrador de A viagem vertical faz (um movimento narrativo, aliás, que exige muita calma e tempo, tentativa e erro, que Vila-Matas, talvez por conta do novo contrato, abandonou - o famoso festina lente)”. Mas não foi o que aconteceu. O livro seguiu seu curso, sem mudanças. É um livro cinzento, sem altos nem baixos, vai no mesmo registro até o fim. Mesmo o fim da era da imprensa não gera um clímax ou um ponto extremo de loucura no protagonista. Mas não deixa de ser perturbador esse tom – depois da intensidade que se dispara em muitas direções de Montano e Bartleby ou da delirante exaustividade de Pasavento.
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O que há de mais interessante no livro ficou nas entrelinhas, bem de vez em quando expresso: a relação entre Joyce e Beckett. Logo que saíram as primeiras notícias sobre o livro, pensei que esse seria o eixo principal, e não a aposentadoria amarga de um editor alcoólatra de Barcelona. A analogia que apresenta Vila-Matas (mas que não explora da forma com que exploraria se algo não tivesse mudado) é a seguinte: Joyce está para a era da imprensa assim como Beckett está para a era das mídias digitais, no sentido de que para Joyce ainda havia o grandioso, o trágico e a totalidade, enquanto Beckett opera ao rés do chão, de cara para o chão, no silêncio e na impossibilidade. Há, portanto, esse diálogo entre dois mundo que conviveram intimamente, ainda que absurdamente opostos. Ou seja, um contexto que opera tanto no geral quanto no particular, tanto na literatura quando na geopolítica – tanto no tema quanto na forma.
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Esse contato entre dois mundos é apresentado já na primeira parte, e também abandonado rápido demais. Vila-Matas focou demais nas agruras do velho editor e descartou muito rapidamente as possibilidades críticas mais interessantes do livro. Na primeira parte, Riba relê O litoral das sirtes, romance de Julien Gracq, e dela retira uma teoria do romance com 5 etapas – e reflete sobre o procedimento deliberado de retirar regras para o romance futuro de um livro tido por ultrapassado (Vila-Matas escreve isso, ou seja, Riba sabe que Gracq é tido por velho e deliberadamente retira daí uma projeção para o futuro – sobrevivências do arcaico operando dentro da teoria literária). As 5 diretrizes para o romance do futuro, retiradas de Gracq, são: 1) intertextualidade; 2) conexões com a alta poesia; 3) consciência de uma moral em ruínas; 4) ligeira superioridade do estilo sobre a trama; 5) a escritura vista como um relógio que avança.
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Há sempre a morte e o fim, no fim das contas. Eras que acabam, pessoas que morrem, velórios, cemitérios. “Dublinesque”, o poema de Philip Larkin que dá título ao livro, é um poema fúnebre – acompanha o cortejo de uma prostituta. “São sempre os outros que morrem”, diz a lápide de Duchamp, outra figura que passou rápido demais pelo livro (há inclusive a reutilização da frase “Por que Marcel Duchamp voltou do mar?”, que está na primeira parte de Montano). Há a morte do autor, que Vila-Matas insiste em voltar, ainda que o final do livro se esforce para dar uma nova volta no velho parafuso. A morte como um conjunto complexo de resíduos do passado, que Vila-Matas vai posicionando aqui e ali – ainda que, dessa vez, em alguns lugares previsíveis.
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