Segundo a tradição talmúdica, os demônios são puros espíritos que, tendo sido criados por Deus na sexta-feira à tarde, na hora do crepúsculo, não puderam receber corpo, porque o sábado já havia começado.
Desde então, os demônios tratam insistentemente de procurar um corpo e, com este objetivo, aproximam-se dos homens, tratando de induzí-los a práticas sexuais em que falta o par feminino, para que possam construir um corpo com o sêmen que cai no vazio.
Quando o homem morre, todos os filhos que engendrou ilegitimamente com os demônios, a partir das práticas sexuais ilícitas ao longo da vida, comparecem depois de sua morte para participar do lamento fúnebre.
Essas pequenas formas sem corpo gritam ao redor da tumba: “perdemos nosso pai, perdemos nosso pai!”
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Os demônios estão aí – avatares do mal. Alguns esforços na literatura contemporânea procuram dar conta das sobrevivências dessas imagens – imagens que organizam nosso mundo na medida que são representações de duas estruturas fundadoras, céu e inferno. Paraíso perdido, de Cees Nooteboom, e o anjo como performance, como cosplay e flash mob. Harold Bloom insiste na ligação do Juiz Holden, o maior e melhor personagem de Meridiano sangrento (Cormac McCarthy), com uma esfera super-humana, sobre-humana ou pré-humana – uma espécie de força atávica que irrompe em um momento de desespero. E não essa a mesma impressão que temos com Anton Chigurh, em Onde os velhos não têm vez? Mickey Sabbath, protagonista de O teatro de Sabbath (Philip Roth), além de toda ressonância sabática, religiosa e judaica (lembre o dia de formação dos demônios, lá em cima – e lembre a cena em que Sabbath chora a perda da amada com todos os fluidos de seu corpo em frente à tumba, de madrugada), é, para dizer o mínimo, um péssimo exemplo. Talvez seja possível ler a possessão em Nove noites, de Bernardo Carvalho, na mesma linha.
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Na figura do anjo, origem e fim coincidem. Cada homem é criado segundo a imagem de um anjo que lhe é atrelado no nascimento – e quando morre o homem é levado à conciliação com aquilo que nunca foi.
O anjo que vem ao encontro do homem no juízo final não é a imagem original, mas aquela que o próprio homem cristalizou com suas ações em vida.
A ação final do anjo é como uma memória involuntária que traz imagens que nunca foram vistas, até serem recordadas.
Essa utilização messiânica da memória está na leitura que Benjamin faz de Proust, na leitura que Piglia faz de Kafka através de Tardewski e na leitura que Cortázar faz de Keats, em pleno pampa argentino, em fins da década de 1940.
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