segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Sem ajuda divina


Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que crêem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes-postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refrescos, anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros, canetas, mochos, caixinhas-de-música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua colecção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do coleccionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.

Saramago. Todos os nomes. Companhia das Letras, 1997, p. 23-24.

É preciso sempre lembrar da inventividade de Saramago e da maestria com que sempre puxou os fios das histórias, como naquele truque de retirar de dentro de um punho fechado uma série de panos coloridos amarrados uns nos outros. Ao contrário do que acontece em Gonçalo Tavares, seu imensamente talentoso sucessor, por trás da amargura e da rigidez do mundo técnico há, eventualmente, em Saramago, pares de olhos que lacrimejam, gestos súbitos de reconhecimento, conversas amenas. É o mesmo buraco negro, porém, que assombra os dois escritores: Deus - sugando as forças dos homens e toda plausibilidade do mundo. Na obra de Saramago, Deus frequentemente aparece como um inimigo, um castigo imposto pelo homem sobre si próprio, a legítima sarna para se coçar. O trecho acima é tudo isso junto: é a soberba de Lúcifer; é a Torre de Babel (uma Torre de Babel que retorna, que não cansa de se reconstruir); é a memória de Funes; é a maleta de Duchamp, Vila-Matas e Benjamin (e também sua coleção de brinquedos antigos); os microgramas de Walser; os talismãs de Sebald, etc.

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