terça-feira, 16 de março de 2010

Piano e pensamento

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Edward Said tocava piano. Felisberto Hernández tocava piano. Quantos contos o segundo deixou de escrever, quantos ensaios o primeiro deixou de escrever, enquanto tocavam piano? Eu não tenho como apreciar aquilo que repetiram ao piano - somente aquilo que produziram no papel. Said poderia ter relido Coração das trevas mais uma vez - ou talvez aprofundado ainda mais suas considerações sobre a América Latina, partindo de Nostromo. Said era especialista em Conrad, seu primeiro livro publicado é sobre Conrad. Conrad e a "ficção da autobiografia". A leitura de Conrad como uma cifra do trânsito e do múltiplo pertencimento. A partir de Conrad, Said tece seu percurso, ficção da autobiografia. Derrida faz a desconstrução do texto; Said faz a desconstrução da geografia. Movimentos semelhantes em níveis distintos. Alguns de vocês provavelmente sabem o quanto Thomas Bernhard se dedicou ao piano. Está lá em O náufrago. Um livro que, apesar de contar com a ilustre presença de Glenn Gould, trata exclusivamente do umbigo de Thomas Bernhard. Não que eu não goste, eu gosto. Bernhard é um encontro psicanalítico em forma esquizóide: ele fala, ele escuta, ele delira, ele mesmo corta e monta, ele é analisando e analista, escritor do próprio estudo de caso, que é o seu caso, evidente. O piano é o reduto por excelência do monomaníaco, do fissurado. Horas e horas repetindo, indo e vindo. César Aira fala de John Cage e de seu procedimento de manobra do acaso: notas sorteadas, andamentos e ritmos articulados e concatenados sem a mínima interferência do artista. Com o acaso não há bloqueio criativo e também não há controle. Tarefa de casa: pensar em um texto ficcional que lembre aquelas peças de piano nas quais cada mão executa uma melodia, até o choque final. (Essa é a teoria do conto de Ricardo Piglia)
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2 comentários:

  1. Olá. Acabo de descobrir teu blog. Já está nos favoritos...excelente: rigoroso e fluente, em pitadas saborosas. Li todos os teus posts sobre o Bernhard, e para além de saboroso me foi um bocado instrutivo, mesmo que "informalmente". Tenho um interesse localizado por sua obra [que ainda não conheço a fundo], por conta de um outro interese de fundo - minha tese de doutorado, ainda em processo, que trata [obviamente] da questão do fracasso. Fracasso, no entanto, entendido como um vetor de potência para a produção artística, sobretudo as artes visuais [sou crítico de arte]. Mas enfim, era pra dizer que foi uma grata surpresa me deparar com teu blog.

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    1. Olá, Guy, obrigado pela leitura e pelas palavras generosas. Boa tese para você, a medida que for se aprofundando em Bernhard, passe aqui para conversarmos.

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