segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Lições de dança



1) Uma das coisas que chamam a atenção durante a leitura da breve novela de Bohumil Hrabal, Lições de dança para idosos, de 1964, é a quantidade de suicídios: muitos personagens, nos mais variados contextos, decidem pela morte pelas próprias mãos; o motivo principal, que organiza boa parte dessas ocorrências, é a desilusão amorosa - de resto, tema forte e constante de Hrabal, sempre interessado no corpo, no sexo, no toque, no orgasmo, no beijo (em Trens rigorosamente vigiados, por exemplo, novelinha do ano seguinte, 1965, o controlador de tráfego da pequena estação onde trabalha o narrador se chama "Hubička", cujo significado literal, em tcheco, é "beijoca" (é o que informa o tradutor Luís Carlos Cabral em nota)).

2) De onde Hrabal tira esse estilo convulsivo e heterogêneo? Lições de dança para idosos, por exemplo, é uma novelinha feita de uma frase só, com ideias e cenas separadas apenas por vírgulas, sem qualquer preocupação com coesão ou lógica na junção de uma história a outra - o que organiza o todo é a voz do narrador, que aparentemente está contando suas histórias para um grupo de mulheres (dançarinas?) no que parece ser um ajuntamento vestido nos fundos do terreno de uma igreja. Diante desse fluxo, e pensando na data de lançamento (e de produção de Hrabal de uma forma geral), vem à cabeça, sem dúvida, o Ulisses de Joyce - que teve o tcheco como uma de suas primeiras traduções, já em 1930 (logo depois das traduções para o alemão (1927) e francês (1929)).

3) Em um momento de Lições de dança, por exemplo, o narrador conta que estava andando pela rua e vê uma linda mulher que não parece estar usando calcinha; ele fixa o olhar exatamente ali, que, segundo o narrador, "é o ponto onde Goethe gostava de fixar o olhar antes de se sentar para escrever poemas"; em outro momento, o narrador relembra um velho conhecido, velho parceiro de noitadas, que, quando bêbado (especificamente nas festas na igreja), gostava de pegar as estátuas dos santos e despejar slivovitz pelas bocas de louça dos santos, o que gerava intensa revolta no padre, que vinha correndo, gritando: "bando de tártaros, é assim que vocês se comportam na casa de Deus?". 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Um rato


Um rato entrou, não sei de que buraco;

Não silencioso, como é seu hábito,

Mas presunçoso, arrogante e bombástico.

Era loquaz, rebuscado, equestre:

Empoleirou-se em cima da prateleira

E me fez um sermão

Citando Plutarco, Nietzsche e Dante:

Que eu não devo perder tempo,

Blá-blá-blá, que o tempo urge,

E que o tempo perdido não retorna,

E que tempo é dinheiro,

E que quem tem tempo que o aproveite,

Porque a vida é breve e a arte é longa,

E que sente lançar-se às minhas costas

Não sei que carro alado e falcado.

Que petulância! Quanta baboseira!

Era de me torrar a paciência.

Acaso um rato sabe o que é o tempo?

Logo ele, que está gastando o meu

Com essa lenga-lenga descarada.

É um rato? Que vá pregar aos ratos.

Pedi-lhe que saísse do recinto:

O que é o tempo, eu sei perfeitamente,

Entra em muitas equações da física,

Em vários casos até ao quadrado

Ou com um expoente negativo.

E de meus casos quem cuida sou eu,

Não necessito de governo alheio:

Prima caritas incipit ab ego.


15 de janeiro de 1983


(Primo Levi, Mil sóis: poemas escolhidos, trad. Maurício Santana Dias, Todavia, 2019, p. 94-97)

domingo, 9 de novembro de 2025

O convite



1) Lendo o livro de Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, encontro uma passagem sobre Barthes (o objetivo de Robbe-Grillet é, também, o de acessar o registro autobiográfico, mesclando com ficção), que transcrevi aqui. O que me chama a atenção é, em primeiro lugar, esse dia único, irrepetível: a inauguração de Barthes do Collège de France, a primeira vez que jamais poderá ocorrer de novo; em segundo lugar, me chama a atenção o modo como Robbe-Grillet indica certa infelicidade permanente de Barthes - "uma das raras vezes em que veria Roland feliz e descontraído, livre da competição que lhe pesava como uma montanha".

2) Pesquisando sobre essa aula inaugural de Barthes, encontro, por acaso, uma foto de um dos convites - mas não é qualquer convite, aparentemente se trata do convite enviado a Julia Kristeva. A foto está em um perfil de instagram, "better_read_than_dead_bk" (uma postagem de 10 de julho de 2025; escrevem, entre outras coisas: "Proud to finally frame my very first (2017?) in this stolen Walmart frame — Julia Kristeva’s invitation to the invite-only inaugural lecture by Barthes at what would prove to be his last ever position at the Collège de France. Not for sale, although I have spent many weeks thinking someone stole it over the last many years when I couldn’t find it. (i.e. many weeks thinking, “I should have just sold that”)"), aparentemente um sebo localizado no Brooklyn, em Nova York ("ex-867 Broadway", agora "Greene Ave Garage (by appointment or chance)"), e o texto do convite diz: "Roland Barthes vous prie de lui faire l'honneur d'assister le vendredi 7 janvier 1977, à 17h30, dans la Salle 8 du Collège de France, à la leçon inaugurale de sa chaire: 'Sémiologie Littéraire'". 

3) Nos comentários da postagem, surge um usuário que diz ter comprado o livro dentro do qual estava o convite enviado a Julia Kristeva; usuário "ptsdboy" escreve: "and it was found in the book which i bought! (Annette Michelson’s copy of Mythologies)"; ninguém responde ao comentário, corroborando ou não a informação, de modo que existe, portanto, essa possibilidade: o convite de Julia Kristeva, por alguma razão, foi parar nas mãos de Annette Michelson (1922-2018), que o colocou dentro de um exemplar de Mitologias, livro de Barthes (não fica claro se uma edição em francês ou inglês). (Michelson e Kristeva provavelmente se conheceram nos EUA, quando a segunda chegou em Columbia como professora visitante no início dos anos 1970).

sábado, 1 de novembro de 2025

Um perverso



"Lembro-me da noite inaugural, no Collège de France, para a primeira aula de Roland Barthes. Depois da sessão, havia uma festa alegre na casa de seu amigo marroquino. Foi uma das raras vezes em que veria Roland feliz e descontraído, livre da competição que lhe pesava como uma montanha. Os convidados eram na maioria seus jovens discípulos, com algumas raras moças, mas se encontram ali também cinco ou seis antigos companheiros: Genette, Foucault, Deleuze e eu mesmo. Depois de abundantes libações, a atmosfera tornando-se mais terna e acariciante, digo a Barthes que estava na minha hora de partir, dadas as minhas preferências bastante restritas nesse campo.

Michel Foucault, que não bebia jamais uma gota de álcool e tornava-se, com a idade, cada vez mais intolerante em relação aos heterossexuais, adotando seu ar de aiatolá, guardião da lei divina, lança-me bem alto: 'Eu te disse e repito, Alain: sexualmente, tu vives e sempre viveste no erro!'. Claro, havia sarcasmo no brilho dos seus olhos de filósofo passional, mas a condenação parecia contudo tão evidente que Roland, encarnação da tolerância, sobretudo naquela noite, protege-me do juiz, passando o braço em torno dos meus ombros, e propõe em minha defesa: 'Apesar de tudo, é um perverso...' - 'Isso não basta!', decide Foucault com violência"

(Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, trad. Juremir Machado da Silva, Sulina, 1997, p. 207-208)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O Nobel de Simon


"Leciono na Universidade de Nova Iorque durante o outono de 1985, quando recebo uma chamada telefônica de Paris-Match anunciando-me o Nobel de Simon. Pulo de alegria. A carreira internacional de nosso amigo arrasta-se um pouco por causa das dificuldades estilísticas encontradas por seus tradutores. O prêmio sueco permitirá enfim o impulso que esperávamos. (...) 

Meu jornalista parisiense declara então: posto que isso lhe dá tanto prazer, escreva um artigo para Match. Recuo prontamente, como de hábito: não sei fazer esse gênero de trabalho, não escrevo com facilidade, precisaria de tempo, corro risco de não ser entendido pelo grande público... O outro interrompe minhas justificativas: 'Eis, diz, a situação: um artigo bastante desfavorável, idiota e injurioso deve ser publicado por nós. Só será possível evitar isso se eu conseguir com rapidez outro texto, assinado por um escritor conhecido, pertencendo à mesma escola, etc'

Pergunto qual seria o prazo de entrega. Terei de ditar, por telefone, cinco páginas até a manhã da próxima segunda-feira. Estamos no fim de semana. E não se trata, acrescenta meu interlocutor, de falar de formas ou de teorias literárias. O importante é contar anedotas pessoais mostrando o caráter do homem, sua simplicidade, gentileza, os imprevistos de seu destino... (...)

Relato, em particular, como encontrei Claude. (...) Jean-Edern pois me passa o manuscrito do Vento, que devia sair pela Calmann-Lévy. Li-o de uma só vez, no maior entusiasmo. Pedi para encontrar o autor do qual nada conheço. A entrevista acontece sem demora, na rua Bernard-Palissy, na sala de Jérôme Lindon, a quem entreguei imediatamente o belo texto e cuja opinião confirma a minha. 

Afirmamos em coro nossa admiração pelo quase desconhecido e deploramos que seus livros fossem publicados depois de certo tempo sob o selo de um editor que parece tão pouco adequado para eles. Simon alega que um contrato, porém, é um contrato. Falando então mais detalhadamente de seu romance, ponho-lhe a questão que me queima os lábios: por que, próximo ao fim da magnífica trama, levado por uma opaca onda tempestuosa, deve-se cair de tão alto para ler passagens explicativas, inúteis e enfadonhas, intercaladas como absurdos parapeitos no caminho do desfecho inelutável e tumultuoso? Claude Simon responde sem hesitar que esses capítulos foram acrescentados após, não pertencendo, em seu entender, ao corpo do trabalho escrito, mas que é obrigado (para acalmar Calmann) a racionalizar um pouco a sua narrativa no final; sem isso, o livro seria recusado. (...)

O Vento sai portanto pela Minuit, evidentemente sem as sequências normalizadoras, que não tinham mais nenhuma razão de ser... E meu artigo sai em Match... Recebo de imediato um telefonema severo e desconcertado de Lindon: Claude está furioso por essa história ter sido contada e quer enviar à revista um desmentido categórico, etc. (...)

Jérôme Lindon consegue, não sem dificuldades, aliviar a comichão de Claude. E não ouço mais falar do caso. Durante dois anos, não mais encontro meu irascível colega. (...) Um grande almoço da NYU, organizado em Paris por Bishop, nos reúne enfim de novo. Desde de sua entrada, atiro-me sobre Claude para acolhê-lo de braços abertos, sem rancor. Ele quer se desviar, parece hesitar em reconhecer-me; depois, fingindo subitamente me identificar: 'Ah, sim! O autor do Vento?', como se eu me tivesse gabado de ser o verdadeiro pai de seu livro!

Eu estava naquele momento em companhia de Nathalie Sarraute, a quem tive de explicar a origem da alfinetada e por que Simon tinha-me em seguida tão cordialmente voltado as costas. Com seu tom suave, e o esboço de sorriso do qual nunca se sabe se é de uma maldade espantosa ou muito indulgente, Nathalie respondeu-me que, sem nenhuma dúvida, nosso confrade ruminava a sua frase há dois anos"

(Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, trad. Juremir Machado da Silva, Sulina, 1997, p. 92-95)

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Ciência da mediação


"O psicanalista Jacques Lacan coloca o imaginário, o simbólico e o real como as três ordens distintas, mas interdependentes da experiência psíquica. Elas reenquadram a topografia freudiana de eu, supereu e isso, respectivamente, elucidando que os domínios do sujeito também são reinos objetivos do social. O imaginário é o registro de imagens, identificações, inteirezas e projeções; o simbólico é o registro de linguagem, instituições, leis, práticas e ordem; o real é o registro daquilo que catalisa o imaginário e escapa ao simbólico - o impossível, o não representável, o material, o contraditório ou desprovido de sentido. 

Em certo sentido, esses registros descrevem o desenvolvimento psíquico: uma experiência infantil de incorporação e reciprocidade umbilical (imaginário) amadurece nas mediações da linguagem (simbólico), ao passo que essa progressão também efetua retroativamente um indício de algo inacessível e indizível (real). Em outro sentido, no entanto, a sobreposição e subposição simultâneas desses três é fundamental, visto que o sujeito do inconsciente é variado, divergente, nunca é inteira e diretamente ele mesmo.

Tanto por meio desse modelo de desenvolvimento quanto por meio desse modelo estrutural, a psicanálise habilita uma ciência da mediação sem precedentes: um estudo de como linguagem e normas informam desejos; de como desejos só conseguem se tornar legíveis nas distorções de parapraxias, sonhos, trapalhadas e sintomas; de como o eu não é autoevidente, sendo, pelo contrário, produto de relações sociais"

(Anna Kornbluh, Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais, trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2025, p. 69-70)

domingo, 26 de outubro de 2025

Josef Egelhofer



1) Voltando a Campo Santo, durante a releitura, me ocorreu que esse texto tardio sobre a morte, para Sebald, poderia ser também uma forma de reconfigurar e evocar antigos pontos de ancoragem de sua poética - e, no caso da morte, um ponto de ancoragem por excelência é a sua relação com o avô, Josef Egelhofer, que morre em 1956, mesmo ano da morte de Robert Walser. Foi com o avô que Sebald, criança, aprendeu sobre o gosto pela caminhada, pela natureza, pela identificação de plantas e árvores, pela contemplação de uma forma geral.

2) No quinto ensaio de seu livro Logis in einem Landhaus, Sebald comenta diretamente a conexão entre seu avó e Walser: o subtítulo do ensaio o qualifica como uma "lembrança" ("erinnerung", em alemão), falando de Walser como uma personificação de seu avô em maneiras e aparência; Sebald mostra fotografias de seu avô (com o pequeno Sebald segurando sua mão) para mostrar a proximidade na aparência; após resumir as semelhanças entre os dois homens, Sebald passa a formular uma série de perguntas que estão no cerne de toda a sua obra como escritor:

Qual é o significado dessas semelhanças, sobreposições e coincidências? Serão elas rebuscamentos de memória, delírios do eu e dos sentidos, ou, melhor, esquemas e sintomas de uma ordem subjacente ao caos das relações humanas, aplicável igualmente aos vivos e aos mortos, que está além da nossa compreensão?

3) Na releitura de Campo Santo, portanto, o retorno do avô é forçosamente notado: "Recordo muito bem como, criança ainda, deparei pela primeira vez com um caixão aberto e tive a sensação surda no peito de que o avô ali colocado sobre palha de madeira sofrera uma injustiça vexaminosa, a qual nenhum de nós, os sobreviventes, seríamos capazes de vingar. E agora há um bom tempo também sei que, quanto mais a pessoa carrega o peso da tristeza imposto ao ser humano, muito provavelmente, não sem motivo, não importa por que razão, mais chance ela terá de encontrar esses fantasmas" (Sebald, Campo Santo, trad. Kristina Michahelles, Cia das Letras, 2021, p. 35). 

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Excessos


"O ponto comum que une Jorge Luis Borges a Manuel Puig é o fascínio pelos escombros da erudição na periferia do ocidente. (E também a opção ideológica pelo antiperonismo, mas essa é uma discussão que escapa às dimensões deste artigo.) No caso de Borges, fascínio pelo entulho da erudição de fundo europeu e, no caso de Puig, pelo entulho da produção cultural de fundo basicamente norte-americano e hispano-americano. 

Estou referindo-me a um traço sobressalente na crítica irônica e desdenhosa que a literatura dos dois faz à reflexão intelectual do latino-americano, sempre pontuada pelo gosto da novidade e pelo excesso de erudição, como já descobria Claude Lévi-Strauss ao chegar em 1934 a São Paulo. Nós, latino-americanos, temos mais leituras e leituras mais vastas do que os pesquisadores do chamado primeiro mundo, mas nossa erudição livresca tem pouco contato com os problemas imediatos da nação, apresentando-se como uma espécie de excesso inútil, semelhante ao da lantejoula, cujos escombros são a marca original dos textos de Borges e de Puig" (...)

"Manuel Puig é o primeiro grande autor latino-americano que trabalha com a forma de escombro derivada do excesso de excesso da indústria cultural estadunidense e argentina, ou seja, com o quase lixo – filmes ultrasentimentais, radionovelas, tangos e boleros. Trabalha com a superabundância da mais gratuita das erudições juvenis, que é a proporcionada pelos produtos de quinta categoria que nos são exportados ou, à semelhança deles, produzidos por aqui. Da conjunção das ficções fantasiosas do bibliotecário Jorge Luis Borges e dos excessos sobre o excesso do cinéfilo Manuel Puig é que foi surgindo, a partir dos anos 1980, uma nova geração de escritores latino-americanos, que na falta de outro nome chamaríamos de os mistificadores, cujo melhor exemplo na Argentina é Ricardo Piglia"

Silviano Santiago, "Manuel Puig: a atualidade do precursor", aqui.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

A arte da levitação



1) Logo no início de "Campo Santo", o texto que dá título ao livro de mesmo nome - projeto que Sebald abandonou para escrever Austerlitz, e que não conseguiu retomar por conta de sua morte em 2001 -, o narrador de Sebald chega finalmente ao cemitério da pequena cidade (Piana, na Córsega), depois de uma aventura por "caminhos tortuosos": ele escreve que precisou de "uma boa hora e meia" para chegar até lá e, "como quem domina a arte da levitação", caminha "quase sem gravidade entre as casas e os jardins", ao longo do muro que demarca o terreno "em que os moradores do lugarejo enterram seus mortos".

2) Depois dessas imagens do ar e da suspensão, o narrador de Sebald, abruptamente, se lança à terra das tumbas, a aterragem por excelência, uma vez que os mortos estão ali para sempre. Não apenas isso, já que essa aterragem inicial é enfatizada pela observação de que as tumbas estão afundando: "muitos dos túmulos que cobrem o morro seco já afundaram no solo e foram parcialmente sobrepostos por outros, acrescentados depois". É nesse contraste entre o etéreo e o material que se inscreve a poética de Sebald de uma forma geral - e um dos tantos pontos que ele desenvolve a partir de Walser.

3) Robert Walser publica em 1913 o conto Ballonfahrt, "Viagem de balão". Num primeiro momento, a viagem de balão e o deslocamento aéreo não combinam com aquilo que Walser mostrava em sua vida e em sua poética - se há movimentação em Walser, ela é quase que exclusivamente pedestre, no rastro de Rousseau e dos andarilhos medievais. Em um dos ensaios de seu livro Logis in einem Landhaus, Sebald ressalta justamente esse aparente paradoxo, argumentando que é nesse momento de exceção que Walser mais se revela: "o único momento em que vejo o viajante Robert Walser livre do peso de sua consciência é nessa viagem de balão".

sábado, 4 de outubro de 2025

As moedas de Teseu

Moeda do século II d.C (Kroll 180):
Teseu dominando o touro de Maratona



1) Na sua Vida de Teseu, Plutarco oferece um bom exemplo de sua estratégia de leitura e de confronto de fontes, seu posicionamento amplo e aberto de manipulação dos textos e dos discursos do passado (que será tão útil para Montaigne): na seção 25, Plutarco informa que, segundo Aristóteles, Teseu foi o primeiro a olhar para o povo e renunciar à realeza e seus privilégios; aqui ocorre o primeiro salto e a primeira aproximação comparativa: Plutarco escreve que também Homero parece dar testemunho disso, já que no "Catálogo das naus" (no Canto II da Ilíada) só usa a palavra "povo" para os atenienses.

2) De Aristóteles - textos escritos mais ou menos 500 anos antes de sua época -, Plutarco vai para Homero - mais ou menos 400 anos antes de Aristóteles, o que gera um arco de quase mil anos entre a Ilíada e a Vida de Teseu - e nesse curto-circuito tenta juntar os pedaços de Teseu, figura mítica. Já na frase seguinte, Plutarco salta para outro tema - embora ligado diretamente ao exercício do poder: a cunhagem de moedas; Plutarco afirma que Teseu foi responsável pela cunhagem de moedas com a efígie de um boi, ato para o qual oferece três explicações: 1) recordação do touro de Maratona; 2) recordação do comandante do exército de Minos; 3) incentivar os cidadãos à prática da agricultura. 

3) A questão principal a ser levantada é que Plutarco está sempre mobilizando modos de ler os textos do presente e do passado; sua leitura dos textos é sempre exposta em sua própria escrita e, nisso, ele é instigante e contemporâneo (mais uma vez, aí está o principal elo de ligação de Plutarco com Montaigne: "não consigo me livrar dele", é o que diz o segundo sobre o primeiro, em vários de seus ensaios; "sua voz está de tal forma entranhada em minha cabeça, em meu pensamento, em meu estilo, que é impossível dizer onde começa um e termina outro" - o nome de Plutarco aparece 89 vezes ao longo dos Ensaios)


terça-feira, 30 de setembro de 2025

Montaigne em movimento



"Lamentar que Montaigne tenha proclamado seu apego a uma noção contrária à do progresso (...) é um paralogismo, ou um voto piedoso que é fácil formular com quatro séculos de distância, do alto da boa consciência dada a um intelectual moderno pela convicção de conhecer a 'dialética da história'.

Coisa curiosa, os adeptos da História são muitas vezes os primeiros a esquecer que a noção moderna de história como devir coletivo dos povos ou da humanidade se formou no século XVIII, na mesma época em que a ideia moderna de progresso e, por assim dizer, complementarmente. Montaigne não teve conhecimento da História nem do Progresso - eles ainda não haviam sido inventados

Quando utiliza história no singular, é ora para designar o estudo do passado (a 'ciência da História'), ora para se referir a uma história, relativa a um indivíduo particular (o exemplo disso é dado pelo título do ensaio II, XXXIII, 'História de Espurina'). Em caso contrário, fala das histórias, em um plural que exclui por definição a ideia de um sentido único e providencial que ordenaria o conjunto dos acontecimentos passados e cujo desenvolvimento posterior seria confiado à geração presente"

(Jean Starobinski, Montaigne em movimento, trad. Maria Lúcia Machado, Cia das Letras, 1992, p. 254-255)

*

"Falar de uma filosofia de Montaigne é um equívoco. Não há sistema algum; ele mesmo afirma, por exemplo, que é inútil aprender a morrer, pois a natureza encarrega-se disso à nossa revelia; e falta-lhe também uma verdadeira vontade de ensinar como a de Sócrates (que de resto bem se pode comparar a ele) e, portanto, uma vontade de alcançar uma validade objetiva. Aquilo que escreve dirige-se a ele e vale apenas para ele; se outros descobrirem aí alguma utilidade e prazer, tanto melhor"

(Erich Auerbach, "O escritor Montaigne", Ensaios de literatura ocidental, p. 150)

sábado, 27 de setembro de 2025

Montaigne: saber viver




1) Para Montaigne, toda doxa pede e determina uma contradoxa - um "pensamento" que exige um "contra-pensamento", uma "posição" que exige uma "contra-posição" (e nisso ecoará em Rousseau, mais adiante em Derrida). Como no caso da medicina, do corpo e dos remédios, como escreve Starobinski em seu livro Montaigne em movimento: "O que Montaigne exporá de sua saúde corporal será, portanto, uma antimedicina, mas habilitada a fazer frente à medicina, pelo fato de que pode, com mais razão, invocar a experiência em que a medicina, como vimos, assenta seus mandamentos" (p. 161). Poucas linhas adiante, completa: "A techné do médico é suplantada pelo saber viver do indivíduo exposto à doença".

2) Ao tentar, portanto, estabelecer contra-pensamentos diante da doxa de distintos campos (teologia, política, filosofia, medicina, etc), Montaigne luta no interior de certos campos discursivos - ele tem dificuldade de sair da linguagem médica para falar contra a medicina, como escreve Starobinski, mas também tem dificuldade de sair da linguagem teológica ou filosófica e assim por diante (ele faz uso de categorias, termos e metáforas: esse também é o procedimento central de sua relação com os textos do passado e com as citações que, frequentemente, deixa veladas em sua dicção - especialmente com Platão, Sócrates, Plutarco).

3) Montaigne vai aproveitar os termos da medicina - a teoria dos humores, a influência do ambiente, a harmonização dos influxos externos - para retornar à textualidade, à literatura: no ensaio "Sobre versos de Virgílio" (III, V), por exemplo, vai falar do valor terapêutico do calor: pensado não pelo viés evidente, na contraposição entre cru e cozido (Rousseau, Lévi-Strauss, Derrida...), mas metaforicamente, pelo viés do reaquecimento promovido pelos afetos, pelo amor. Ao mesmo tempo em que se abre à transformação, às alterações possíveis e intempestivas, porém, Montaigne reforça várias vezes que tenta, forçosamente, manter sem perturbações o seu estado habitual (ou seja, Montaigne luta contra sua própria doxa, contra a manutenção rígida de suas próprias posições; ele é "flexível", "pouco obstinado").

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Ainda o espirro


1) Em uma nota de rodapé da Seção 2 de seu ensaio História natural da religião, David Hume cita a História natural de Plínio para comentar a proliferação de divindades no contexto do paganismo; cita ainda Hesíodo e sua informação (Os trabalhos e os dias, I, 252) da existência de 30 mil divindades; acrescenta por fim que Aristóteles (Problemas, 7, 33) aponta que os domínios das divindades foram de tal modo tão subdivididos que havia até um deus dos espirros.

2) No mesmo livro, agora na Seção 12, também em uma nota de rodapé, Hume comenta especificamente a conduta de Xenofonte (grande capitão e filósofo, discípulo de Sócrates), prova "imediata e incontestável" da credulidade geral dos homens; aconselhado por Sócrates, Xenofonte consultou o oráculo de Delfos antes de se engajar, como mercenário, na expedição de Ciro (relatada por Xenofonte na "Anábase", que descreve a campanha militar de Ciro, o Jovem, contra seu irmão Artaxerxes II, rei da Pérsia, em 401 a.C. Xenofonte participou como mercenário nesta expedição, que envolveu um exército de dez mil gregos, e narrou a jornada de retorno após a morte de Ciro na Batalha de Cunaxa).

3) Já durante a expedição, Xenofonte teve um sonho na noite seguinte à captura do general, ao qual prestou grande atenção, mas que julgou ambíguo; em seguida, com todo o exército (escreve Hume), Xenofonte considerou que o espirro (não fica claro se é o espirro de uma forma geral ou se é o espirro de alguém específico) era um presságio muito favorável (o resgate do espirro é, na verdade, uma expansão do comentário sobre um texto de Plutarco no qual um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada).

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

50 desenhos


1) Depois de revisar o comentário que faz Cristina Rivera Garza sobre o livro de Alice Oswald, no qual resgata a Ilíada a partir dos soldados mortos, reencontro o manuscrito da Ilíada do século V com suas iluminuras, suas miniaturas - pouco mais de 50 desenhos sobreviveram, depois de recortadas e coladas em um segundo manuscrito, 600 anos mais jovem: as figuras foram, primeiro, desenhadas nuas e, posteriormente, cobertas com roupas de tinta (todas as imagens, aliás, cuidadosamente numeradas: seguindo a cronologia da história, seguindo o encadeamento e a sucessão das páginas) (Um adendo importante e revelador: boa parte das miniaturas são visíveis no site do Instituto Warburg). 

2) Sobre o projeto de Oswald, escreve Rivera Garza: "É, portanto, em primeira instância, uma pilhagem. A poesia olha de soslaio para a história e, com o bisturi na mão, retira do pântano de dados e anedotas o momento único e indivisível em que um ser humano perde sua vida. Afinal, isso é a guerra; é disso que se trata a guerra: como seres humanos de carne e osso perdem suas vidas violentamente. Armado, então, com os instrumentos da poesia, Oswald arranca essa perda que é a morte do acúmulo de dados ou de sangue que tantas vezes leva à indiferença, à insensibilidade ou a leituras desconexas" ("Usos do arquivo: do romance histórico à escrita documental", Os mortos indóceis, trad. J. R. Terron, WMF Martins Fontes, 2024, p. 150).

3) De resto, a pilhagem também é um tema homérico, parte constituinte do mundo da guerra homérica: viajar, conquistar, pilhar, retornar (nesse sentido, o procedimento poético de Oswald - semelhante àquele de María Negroni em livros como Archivo Dickinson ou Objeto Satie ou Cartas extraordinarias, precisamente o procedimento da pilhagem, do rearranjo do que já existe, etc - é homérico não só em seu tema ou conteúdo (os 200 soldados reiterados, singularizados), mas em sua dinâmica formal, na transformação da pilhagem em método de organização da poesia (que se desdobra em um segundo ponto fundamental: a enumeração, como aquela que faz o próprio Homero com as naus, por exemplo). 


domingo, 14 de setembro de 2025

200 soldados

Aquiles fazendo um sacrifício, "Ilias Picta"
manuscrito do séc. V, Biblioteca Ambrosiana

1) Em seu ensaio sobre os "usos do arquivo" na literatura (terceiro capítulo de seu livro Os mortos indóceis), Cristina Rivera Garza comenta um trabalho da poeta britânica Alice Oswald, Memorial. An Excavation of the Iliad, no qual ela descarta "sete oitavos" do poema de Homero, resgatando apenas as mortes: Oswald filtra o texto homérico a partir do critério das cenas de morte, deixando na superfície de seu próprio texto apenas o registro da morte de aproximadamente duzentos soldados. Toda morte que aparece em Homero é, ao mesmo tempo, geral e específica - diz respeito ao evento incontornável da morte, que chega a todos, mas diz respeito também às especificidades daquele destino (um destino que envolve, no âmbito do poema, a maestria de Homero no trato com os detalhes: a cabeça separada do corpo; o homem curvado como chumbo).

2) O objetivo principal de Rivera Garza no resgate do trabalho de Oswald (que pode ser lido em paralelo com aquele, mais celebrado e conhecido, de Anne Carson) é comentar e enfatizar a presença dos mortos, pelo viés da "vida precária" de Judith Butler (os soldados mortos como efeito colateral da manutenção do poder, da soberania e assim por diante); o que me interessa, por outro lado, é o modo como o procedimento poético de Oswald garante seu alinhamento a uma linhagem complexa e produtiva da história literária: o uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - uma linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante.

3) Oswald transforma os soldados de Homero em vinhetas biográficas; conta suas vidas na guerra a partir do evento da morte, apresentando seus nomes em caixa alta dentro dos versos do poema: PROTESILAUS, ECHEPOLUS, ELEPHENOR, SIMOISIUS, LEUKOS, DIORES, PIROUS, etc, como entradas de uma enciclopédia ou dicionário. É Oswald quem diz, no prefácio: "Minhas ‘biografias’ são paráfrases do grego; meus símiles, traduções. Entretanto, minha abordagem da tradução é bastante irreverente. Eu trabalho bem colado ao grego, mas em vez de transpor as palavras para o inglês, eu me valho delas como fendas através das quais se vê o que Homero estava mirando" (tradução aqui).

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Contra Flaubert



De fato, detesto Flaubert.

Só mesmo um macho francês

esnobe cheio de si

para zombar a tal ponto 

dos sonhos de uma mulher.

Um macho,

quer dizer, 

alguém que não sonha.

(Os homens sempre tiveram

ciúmes dos sonhos das mulheres

porque não podem controlá-los.)

Flaubert sonhou Emma Bovary,

mas pode-se dizer, com toda a certeza,

que Emma Bovary jamais sonhou Flaubert.

(No final de seus dias, Flaubert estava 

farto da fama de Madame Bovary.

Ela era mais célebre que ele.)


(Cristina Peri Rossi, "Contra Flaubert", Aquela noite (1996), in: Nossa vingança é o amor: antologia poética (1971-2024), edição bilíngue, seleção e tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet, São Paulo: Editora 34, 2025, p. 110)

sábado, 6 de setembro de 2025

Alice, Lincoln, Ford


1) Além de incorporar, em uma das cenas de Alice in den Städten, a presença física de um dos livros de Peter Handke, Wim Wenders também incorporou um dos filmes de John Ford, Young Mr. Lincoln, de 1939, transmitido na televisão de um dos quartos de hotel no qual se hospeda o protagonista; esse filme, contudo, é a incorporação de uma incorporação: esse filme de Ford é citado por Wenders em seu filme porque é citado, anteriormente, em um romance de Handke de 1972, Breve carta para um longo adeus (a história de um jovem escritor austríaco que viaja pelos Estados Unidos em busca de sua esposa, de quem está afastado; Ford inclusive aparece como um personagem no fim da estrada na costa da Califórnia).

2) O mecanismo narrativo básico do filme de Wenders é o da incorporação: fragmentos alheios à cronologia progressiva do filme que são costurados à história; acontece com a capa de Handke e com o filme de Ford, mas acontece também - e sobretudo - com as fotografias instantâneas que o protagonista faz com sua Polaroid ao longo de todo o filme (a primeira cena mostra o protagonista olhando e rearranjando o conjunto das fotografias que tirou até aquele momento, um passado fragmentado que irrompe no presente da narrativa: um passado que pode ser reposicionado, montado, embaralhado, como nas lições de montagem de Aby Warburg e, na esteira desse, Georges Didi-Huberman).

3) Como na fotografia que surge na abertura de A invenção da solidão, de Paul Auster, é também uma fotografia - retirada da bolsinha que Alice leva no pescoço - que reconfigura o percurso do filme: o protagonista e a menina precisam seguir viagem para encontrar alguém que se responsabilize por ela; será a avó; a menina tem uma fotografia da casa (mas não sabe onde é); como no frame do filme sobre Terezín que Sebald incorpora em Austerlitz (a mãe que, aparentemente, surge veloz, como um relâmpago, reconfigurando o percurso/narrativa de Jacques Austerlitz), e eles começam a percorrer a Alemanha de carro em busca do referente real que faz jus à imagem e que permitirá a conclusão da história (que é, mais uma vez, suspensa, postergada, quando a casa finalmente aparece - quem mora lá, agora, é "uma italiana", diz a menina). 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Alice, 1974



1) Wim Wenders lança Alice in den Städten em 1974, uma celebração da fabulação infantil e da presença ilógica das crianças na sociedade, no mundo - uma espécie de desapego com relação aos dogmas e às verdades, como acontece na Rayuela de Cortázar (de 1963), ou ainda mais intensamente em Zazie dans le métro, de Raymond Queneau (de 1959): Alice mente (cria, ficcionaliza) sobre a própria vida, ou ainda, mente a própria vida, ao mesmo tempo em que não sabe nada - não sabe o nome de solteiro da mãe, não sabe o nome da avó ("o nome da minha vó é vó", ela diz). (No ano seguinte, 1975, Perec (que dedica Vida, modo de usar a Queneau) lança W ou le souvenir d'enfance).

2) Se é difícil ligar diretamente Sebald e Wenders (ainda que o primeiro fale do segundo em seu ensaio sobre o livro de Hanns Zischler, Kafka vai ao cinema - Zischler, de resto, que também foi ator, participou de filmes de Wenders), eles compartilham um elo intenso pela via de Peter Handke: é precisamente um dos livros de Handke comentados por Sebald em seus ensaios - Wunschloses Unglück, de 1972, sobre o suicídio da mãe - que Wenders coloca no filme, sobre uma mesinha de centro no apartamento em Nova York de uma ex-amante do protagonista, que recusa sua presença depois de um devaneio filosófico.

3) Assim como o narrador de Sebald, o protagonista de Wenders caminha pelas cidades com uma câmera, registrando não aquilo que se apresenta imediatamente ao olhar, mas o atravessamento entre um momento específico, irrepetível, e a subjetividade de alguém que vive aquele momento para escrevê-lo (junto com as fotografias, e junto com a câmera, o protagonista de Wenders manipula também sua caderneta, na qual elabora um texto interminável, um texto que só pode levá-lo à beira de um colapso nervoso - não por acaso a caderneta se transforma em plataforma para o jogo da forca, quando o protagonista brinca com a criança: sempre a morte, a finitude, the undiscovered country de Hamlet que Sebald tanto usou).

domingo, 31 de agosto de 2025

Fome de terra



Ambivalência e oscilação em Sócrates: em sua postura, em seu discurso e, sobretudo, em sua experiência de vida - o pharmakon de que fala Derrida a partir de Platão, sem dúvida (como o discurso de Sócrates no Fedro se apresenta em uma performance de desafio aos limites da cidade, fora das muralhas, em direção ao bosque, mas sempre fazendo menção de retornar, etc), mas também o fato de Sócrates ter "visto o mundo", de certa forma, como soldado: "começando a partir do século VIII a. C. e continuando ininterruptamente por mais de quinhentos anos até a conquista romana", escreve Finley, "os gregos estiveram constantemente em movimento, quer como migrantes (individualmente ou em grupos), quer como revolucionários exilados".

E continua Finley: "As colônias militares e agrícolas atenienses (clerúquias) do século V a. C., totalizando dez mil homens ou mais no seu auge; o considerável número dos mercenários gregos do século IV, dos quais os Dez Mil de Xenofonte são apenas o exemplo mais famoso; a guerra civil no século III em Esparta sob Ágis, Cleômenes e Nábis - esses são exemplos que podiam se repetir a qualquer momento na história helênica, embora nem sempre com o mesmo impacto dramático. E a fome de terra foi a força propulsora. A fome de terra, por sua vez, originava-se frequentemente da expropriação privada, tendo a dívida por instrumento" ("Terra, débito e o homem de posses na Atenas clássica", Economia e sociedade na Grécia Antiga, trad. Marylene Michael, Martins Fontes, 2013, p. 69). 

sábado, 23 de agosto de 2025

Paradoxos sobre o paradoxo



1) Eros, o Doce-Amargo é, sem dúvida, um livro de análise literária sobre a poesia de Safo, sobre o grego antigo e sobre as relações entre filologia, poesia e filosofia; contudo, é também – e sobretudo – um livro sobre as estruturas profundas da poesia, sobre a colocação de certas palavras muito específicas em posições-chave dentro de uma frase, visando o melhor efeito estético possível. “Há um dilema dentro de eros que tem sido considerado crucial por pensadores desde Safo até hoje”, escreve Carson, mostrando que sua leitura diz respeito simultaneamente ao passado e ao presente.

2) Carson dá atenção às funções de certos termos e suas idiossincrasias – começando pelo “Doce-Amargo”, Bittersweet, sua tradução do glukupikron de Safo (“amor e ódio constroem entre si a maquinaria do contato humano”). Carson nota um verso no qual uma maçã está suspensa na árvore; o verbo para a “suspensão” é epeteto, que vem de petomai, o verbo “voar”. Geralmente é usado “para criaturas com asas ou para emoções que atravessam o coração”, ligado à “emoção erótica”, usado por Safo no fragmento 31 para dizer que eros “dá asas ao meu coração” ou “faz meu coração voar”. No trecho analisado por Carson – do romancista Longo, autor de Dáfnis e Cloé, do século II d.C. –, o verbo está no imperfeito, ou seja, “paralisa a ação do verbo no tempo”, já que o imperfeito expressa continuidade, “para que, como a flecha no paradoxo de Zenão, a maçã voe enquanto permanece parada”.

3) A análise de Carson é impressionante não apenas por aquilo que diz sobre um trecho, um autor, um momento do texto (como faz com o Fedro de Platão, ou com Os amantes de Aquiles [Achilleos Erastai], de Sófocles); é digna de nota também porque reitera o procedimento que sustenta o livro como um todo: buscar momentos de indefinição e ambivalência cristalizados na língua, nos significantes, na cadência poética de textos arcaicos, uma vez que o cerne da literatura é precisamente sua polissemia (“Da mesma forma que todos os paradoxos são, em certa medida, paradoxos sobre o paradoxo, todo eros é, até certo ponto, desejo pelo desejo”, resume Carson).

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Carta, luto



Consolatio ad Uxorem é uma carta escrita por Plutarco à esposa depois da notícia da morte de sua filha Timoxena, aos dois anos de idade. Ela recebeu o nome da mãe e seu nascimento foi precedido pelo de quatro meninos. Dos filhos de Plutarco, dois já haviam morrido: o mais velho e o "belo Caronte", que ele menciona na carta. Plutarco deve ter escrito a carta no intervalo entre receber a notícia em Tânagra e reencontrar sua esposa em Queroneia, que fica a mais de 64 quilômetros de distância em linha reta - uma viagem de um ou dois dias. Presumivelmente, a carta foi escrita em Tanagra e enviada com antecedência. A frase de abertura da carta já é uma referência a esse desencontro e a essa antecipação da escrita com relação ao encontro que ocorrerá em breve:

O mensageiro que você enviou para relatar a morte da nossa filhinha parece ter me perdido no caminho para Atenas; mas quando cheguei a Tânagra, soube; o funeral, suponho, já foi realizado, e meu desejo é que tenha sido realizado de forma a lhe causar o mínimo de dor, tanto agora quanto no futuro. 

Vários escritos de Plutarco são tidos, por seu estado incompleto, como rascunhos encontrados entre seus papéis após sua morte; esta carta, então, pode não ter sido publicada pelo próprio Plutarco, mas dada ao mundo por seus herdeiros literários.⁠ No entanto, consolações em forma epistolar eram frequentemente, como outras cartas, escritas para publicação.⁠ Uma comparação com outras consolações antigas (Ad Polybium de Consolatione e Ad Marciam de Consolatione, de Sêneca, o primeiro livro das Tusculanas de Cícero e o terceiro do De Rerum Natura de Lucrécio), revela temas recorrentes: o que acontece com a alma após a morte?; ou ainda, o cálculo da proporção entre bem e mal na vida (que na maioria das consolações leva à reflexão de que a vida é desagradável e a morte uma fuga; em Plutarco, surge um equilíbrio favorável: ele lembra à esposa as muitas bênçãos que ainda desfruta).

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

O amor e os amigos



1) Em sua biografia de Dante (capítulo 6, "O amor e os amigos"), Alessandro Barbero fala de uma novidade que surge alguns anos antes da época de Dante, talvez uma ou duas gerações antes, uma nova técnica da expressão, ou ainda, um novo modo de acessar e expressar certos sentimentos: Barbero resgata o momento da Vida nova no qual Dante fala de seu primeiro encontro com Beatriz e, consequentemente, de sua paixão e de seu encanto - a partir desse encontro ocorre a mobilização, por parte de Dante, dessa novidade: analisar a paixão amorosa e traduzir essa análise em versos feitos não em latim, como seria o normal, como seria de se esperar, mas em língua vulgar, na fala do cotidiano. Antigamente isso não existia, escreve o próprio Dante: "certos poetas eram declamadores de amor em língua latina", "e não se passaram muitos anos desde que apareceram pela primeira vez esses poetas vulgares". 

2) Essa novidade de ordem linguística, contudo, é potencializada por um método de proliferação das informações que já tinha uso consolidado na época de Dante: o envio de poemas para vários destinatários, como cartas, para alimentar a troca e criar uma rede de crítica e experimentação poética - e aqui, mais uma vez, esse eixo fundamental da carta, da correspondência e do envio, parte constitutiva da tradição, desde a Carta VII de Platão, passando pelas cartas de Cícero, do Apóstolo Paulo e de Santo Agostinho (é, de novo, a questão do endereçamento de que fala Heidegger na “carta”, de que falará Sloterdijk nas “regras para o parque humano” e que retomará o próprio Derrida alguns anos depois ao falar do “cartão-postal”). 

3) Dante, então, envia seu soneto - em língua vulgar, feito a partir do encontro com Beatriz - de forma anônima para vários destinatários, confiando nas regras do jogo que todos conheciam: em breve chegam respostas, também poéticas, salientando os pontos fracos, expandindo certos temas. Uma das respostas vem de Dante da Maiano, um companheiro um pouco mais velho, que escolhe, em sua resposta, uma via irônica e, de certa forma, baixa (no sentido futuro de Rabelais e Boccaccio), recomendando ao rapaz que lave os testículos com água fria, para arrefecer os ardores: "lave suas bolas amplamente / para que se extinga e passe o vapor". 

domingo, 10 de agosto de 2025

María Dolz


1) A narradora de Os enamoramentos, romance de Javier Marías, é María Dolz, mulher na casa dos trinta anos que trabalha em uma editora de Madri e todos os dias toma seu café, pela manhã, no mesmo bar – é lá que sempre observa um homem que, mais adiante, será esfaqueado. A primeira camada da história que conta María Dolz é simples: sua observação daquilo que acontece ao redor. Novos personagens, porém, surgem, e com isso novas versões daquilo que se pensava já conhecido. Marías articula uma narrativa que, em alguns momentos, é carregada de suspense – uma tensão que explode no interior de uma linguagem densa e reflexiva. As cenas de potencial perigo ou violência normalmente surgem de improviso, como que rasgando abruptamente aquele véu descritivo e digressivo da narração de María Dolz.

2) Existem dois momentos em Os enamoramentos que extrapolam questões como narração, credibilidade ou uso dos gêneros – e são esses momentos que garantem a complexidade do livro. Marías, logo depois do primeiro quarto do livro, passa a construir sua narrativa lado a lado com uma novela de Balzac de 1832, O coronel Chabert, sobre um coronel de Napoleão que é dado por morto em batalha mas que retorna, vivo, anos depois. Mais de cem páginas depois, Marías costura em sua narrativa um momento de Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas (de 1844), que trata do mesmo tema de Balzac: uma pessoa dada por morta que retorna para assombrar os vivos.

3) Essas duas incorporações transformam o romance. Ecoam até o final, e temos a impressão de reler Dumas, Balzac e toda uma faceta da tradição literária a partir das palavras de Marías, como numa espécie de espectrografia (como faz Sebald, também pela via de Balzac, em Austerlitz), de necromancia textual. A sensibilidade de Marías está em sua violenta abordagem do passado, levando o leitor a uma profunda reconsideração do tempo e do espaço, a uma profunda reconsideração do real através do literário.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Lacunas foucaultianas



1) Descobri recentemente a resenha de Martha C. Nussbaum do segundo volume da História da sexualidade, de Michel Foucault, publicada em 10 de novembro de 1985 no The New York Times; ela, já de saída, lamenta a morte desse pensador "sério e corajoso" (Foucault morre no ano anterior, em 25 de junho de 1984) e, junto desse primeiro lamento, lamenta também que sua obra mais recente seja desapontadora. Segundo Nussbaum, o tratamento que oferece Foucault da Antiguidade, especificamente dos textos em grego (ela menciona especificamente certa ingenuidade de Foucault no tratamento dos textos "hipocráticos", aos quais ele não dá a devida atenção no que diz respeito à ampla variação de contextos e épocas de circulação dos variados textos, a grande maioria não sendo de autoria de Hipócrates, e sim, precisamente, de hipocráticos), é pouco rigoroso. 

2) Em vários pontos do texto, as críticas de Nussbaum são válidas e estimulantes, embora em certos momentos ela critique o projeto de Foucault não pelo que apresenta, mas pelo que deixa de apresentar (nenhuma menção às peças de Aristófanes, por exemplo), argumento que acaba se tornando contraproducente para a própria crítica, já que algo sempre vai faltar, algo sempre vai ficar de fora, mesmo no trabalho mais sistemático (e é precisamente a sistematicidade que é transformada pela trajetória de Foucault como um todo, que Nussbaum é a primeira a elogiar). 

3) A crítica de Nussbaum dá a impressão de que, para ela, o projeto de Foucault como um todo é válido e estimulante, até o ponto específico em que se choca com seu campo de estudos (talvez ela se identificasse com o trabalho não-convencional de Foucault, em algum nível?, especialmente levando em consideração que, em 1982, Harvard negou seu processo de tenure?), algo que se insinua quando ela critica a dependência de Foucault das traduções: "Para começar, Foucault é automaticamente excluído de qualquer evidência que não seja traduzida (isso inclui algumas evidências cruciais sobre mulheres, para as quais a atenção do livro é, de qualquer forma, desigual), e está condenado a depender dos caprichos dos tradutores para o restante. Ignorando completamente a história política e social grega e os problemas acadêmicos que cercam os textos que utiliza, ele não consegue situar com segurança o que lê."

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Limites, criação



"O verdadeiro mérito da filosofia da história de Vico não reside naquilo que ela nos ensina sobre o processo histórico e o ritmo de suas sucessivas fases. Em seu sistema, a divisão da história humana em épocas e a tentativa de descobrir nelas uma certa ordem - a transição da era divina para a era heroica e da era heroica para a era humana - ainda são atormentadas por características fantásticas. O que Vico vê claramente, e sustenta com toda energia diante de Descartes, é a peculiaridade metodológica, o valor próprio do conhecimento histórico em termos de método. (...)

De acordo com Vico, o verdadeiro objetivo do nosso saber não é o conhecimento da natureza, mas o autoconhecimento humano. A filosofia que, em vez de se contentar com isso, postula um conhecimento divino ou absoluto transgride seus próprios limites e se deixa levar por delírios perigosos. A regra suprema do conhecimento é, para Vico, o princípio segundo o qual nenhum ser penetra no conhecimento verdadeiro, mas naquilo que ele mesmo cria. O campo do nosso conhecimento nunca se estende além dos limites da nossa própria criação. (...)

Mito, linguagem, religião, poesia: esses são os objetos verdadeiramente adequados ao conhecimento humano. Esses são os objetos que Vico examina de maneira primordial no sistema de sua lógica"


(Ernst Cassirer, Ciências da cultura, trad. César Benjamin, Contraponto, 2024, p. 18-20)

domingo, 27 de julho de 2025

A cabeça de Netuno



1) Na sua Carta sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam (publicada em 1751, poucos meses antes do primeiro volume da Enciclopédia), Diderot cobre uma série de temas e apresenta uma constelação de cenas heterogêneas - algo bastante típico do ambiente "iluminista" em geral. Chama a atenção as citações nas línguas originais que faz Diderot - Homero citado do grego, Virgílio e Lucrécio citados do latim, Torquato Tasso citado do italiano - e, dentro desse tópico, chama a atenção o cuidado de Diderot na circunscrição de seus comentários à letra do texto, um método de leitura cerrada que, de resto, como Diderot sabia bem, começou (em certa medida) com os gramáticos alexandrinos em seu trabalho com Homero. 

2) Um dos momentos mais interessantes da carta de Diderot é quando ele discute os momentos em que uma passagem do literário ao visual não é garantida, desejada ou mesmo esteticamente congruente. Para construir o argumento, Diderot resgata uma passagem da Eneida de Virgílio, os versos 124-127 do primeiro Livro: "Netuno percebeu que o mar se agitava com grande ruído e que águas tranquilas do fundo estavam em revolta; violentamente abalado, olha para o alto desde o fundo, erguendo a cabeça acima das ondas". 

3) Diderot argumenta que aquilo que funciona no poema, não funcionaria na pintura - como levar à tela a imagem impressionante do deslocamento do deus das profundezas em direção à superfície? Tudo que a pintura poderia mostrar, no caso específico desses versos, é a imagem do deus degolado, Netuno como uma reles cabeça decepada flutuando no mar, nada mais distante da magnificência produzida pelos versos de Virgílio, que colocam em contato a transformação do destino de Enéias (que sofre no mar) e a súbita consciência de Netuno de que algo não está correto em seus próprios domínios.  

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Os dois sacrifícios



Sócrates como o poeta que abandona a vida para provar seu ponto; que cede aos caprichos dos governantes, mesmo podendo escolher o exílio; leva ao limite sua doutrina, sua posição, leva ao limite a consciência de ser apenas uma gota no oceano, apenas mais um grão de areia na praia (a morte que poderia ser evitada é o corolário da ideia de que "só sei que nada sei"). Nesse sentido, Sócrates prepara o terreno para Jesus, pois é quem prepara o terreno do martírio, ou seja, da valorização filosófica do auto-sacrifício como procedimento de defesa de uma crença, de uma doutrina. 

*

O caminho que leva até Paulo e suas epístolas é o caminho que leva do sacrifício de Sócrates àquele de Jesus; Paulo, alimentado pela filosofia grega prévia (boa parte dela envolvida com a tarefa de fazer sentido do sacrifício de Sócrates, ou seja, fazer sentido da relação entre palavra e verdade, liberdade e política e assim por diante), reconfigura e reorganiza o sacrifício prévio de Sócrates em uma nova moldura doutrinal, tornada possível pelo sacrifício de Jesus; as estruturas teóricas de Platão e Paulo são montadas sobre os legados desses dois cadáveres célebres (condenados em julgamentos, executados com método, dentro de um ritual previamente estabelecido). 


segunda-feira, 21 de julho de 2025

A infraestrutura socrática



1) A complexidade da morte de Sócrates: apesar de ser uma espécie de "herói de guerra" (Sócrates serviu como hoplita na Guerra do Peloponeso), ainda assim condenado (entre outras coisas) por sua falta de comprometimento com a ortodoxia que regia (ou que devia reger, na opinião daqueles que o condenaram) a cidade; condenado por corromper a juventude, mas não necessariamente por encaminhá-los em certa direção, mas por ensinar que existem outras direções; condenado por não corroborar "acriticamente" a dimensão religiosa da vida na cidade (a religião como braço da política, como ingrediente da coesão social), por defender uma sorte de conexão privada com a divindade - que é a velha discussão, tão bem resumida e desenvolvida por Plutarco, da relação de Sócrates com seu daimon pessoal.

2) Talvez, seguindo a linha de pensamento de Friedrich Kittler, seja possível dizer que parte do empreendimento de Sócrates foi o de instaurar uma nova via de comunicação com o divino: o poeta especulativo como um medium de contato entre o alto e o baixo, entre o dizível e o indizível, entre aquilo que pertence ao éter, à nuvem, ao cosmos, e aquilo que pertence ao baixo, ao acessível, aos sentidos, ao cotidiano; Sócrates constrói uma sorte de infraestrutura para a inauguração desse novo hub comunicacional - com a decisiva contradição, contudo, de que ele não coloca a mão na massa, não escreve, não registra, não inscreve sua inovação tecnológica (deixa a tarefa para Platão). 

3) Ou mesmo antes de Kittler, com Marshall McLuhan, na Galáxia de Gutenberg: "Antes de Sócrates, o saber fora o preceptor de como viver retamente e falar bem. Mas com Sócrates veio a cisão entre a língua e o coração. Era inexplicável que, de todas as pessoas, tivesse sido o eloquente Sócrates quem desse início à cisão entre pensar sabiamente e falar bem" (trad. Leônidas de Carvalho e Anísio Teixeira, Editora Nacional, 1977, p. 48).

terça-feira, 15 de julho de 2025

Um livro de Montaigne


Por acaso, pesquisando detalhes da relação entre Montaigne e Plutarco (ou melhor, a relação que Montaigne estabelece com Plutarco a partir da leitura das suas obras), encontro a notícia de um leilão de livros, a divulgação de um achado raro: o exemplar das Vidas de Plutarco que pertenceu a Montaigne - o traço distintivo e excepcional é precisamente a assinatura, Mõtaigne, na folha de rosto (que, no entanto, está riscada). A estimativa de valor para a venda do exemplar no leilão era de 30 mil euros; o livro terminou vendido por 369 mil euros. O exemplar de Montaigne é uma edição de 1565 da tradução que Amyot fez das Vidas de Plutarco.

*

Montaigne nasce em 1533 e morre em 1592; Amyot morre um ano depois, em 1593, mas nascido 20 anos antes de Montaigne, em 1513. A partir de 1559, Amyot trabalha em Roma, traduzindo as Vidas de Plutarco a partir do exemplar do Vaticano; antes disso, já havia trabalhado em uma tradução de sete livros de Diodoro Sículo (publicada em 1554) e ainda fará a Moralia de Plutarco (1572). Com relação à tradução das Vidas, existe uma triangulação literária digna de nota: a tradução de Amyot é utilizada na Inglaterra por Thomas North para sua tradução ao inglês, tradução essa que é utilizada intensamente por Shakespeare para suas tragédias romanas (Julius Caesar (primeira apresentação em 1599), Antony and Cleopatra (primeira apresentação por volta de 1607) e Coriolanus (escrita provavelmente entre 1605 e 1608)).

sábado, 12 de julho de 2025

O tesouro de Boscoreale



1) Rostovtzeff, em seu livro Mystic Italy (de 1927), comenta a intensificação do sentimento religioso em Roma (e no mundo helenístico de forma geral) a partir do século II a.C: vários fatores contribuem para a situação, mas ele dá ênfase ao caos gerado pelas guerras civis (Mário e Sila; Pompeu e César; Antônio e Otaviano, até a Pax Augusta). A instabilidade da vida cotidiana, as mortes, desapropriações, massacres aleatórios - elementos que geram uma busca pelo "além" e um permanente temor diante da morte que pode ser iminente. Rostovtzeff retoma rapidamente o sexto canto da Eneida, de Virgílio, reconhecendo aí um horror do além típico da época.

2) Mais que isso: reconhece "blasfêmias" com relação aos mortos e ao além que não conseguem encobrir o medo e a impotência diante da fragilidade da vida. Já no parágrafo seguinte, Rostovtzeff liga a Eneida de Virgílio ao jogo de utensílios em prata encontrados em Boscoreale, o conhecido "tesouro de Boscoreale", hoje no Louvre. O mesmo sentimento percorre o sexto canto da Eneida de Virgílio e a decoração dos utensílios de prata, com seus esqueletos dançantes: a angústia permanente diante do horror da morte, que não é silenciada, e sim potencializada pelos procedimentos artísticos.

3) O tesouro de Boscoreale foi encontrado em nove de abril de 1895, em um sítio que havia começado a ser escavado em 1876; já no mês seguinte as peças são enviadas clandestinamente para a França por antiquários napolitanos; o Barão de Rothschild compra as peças e as doa para o Louvre; no ano seguinte, 1896, depois do escândalo do transporte clandestino, a escavação é retomada com maior vigilância: chega-se à conclusão que o tesouro havia sido escondido por conta da erupção do Vesúvio em 79. Além das taças com os esqueletos dançantes, o tesouro conta ainda com utensílios que serviam para mexer e misturar o vinho, travessas para transporte de comida, bem como artefatos que parecem puramente decorativos (com motivos animais e vegetais, cenas mitológicas e temas políticos, como as taças "de Augusto" e "de Tibério").

domingo, 6 de julho de 2025

Outro leitor de Faulkner



Some Came Running, filme de 1958 de Vincente Minnelli, conta a história de um escritor, Dave Hirsch, interpretado por Frank Sinatra: em 1948, Hirsch volta à cidade de origem (no interior de Indiana), depois de ser colocado, bêbado, dentro de um ônibus por seus amigos, em Chicago. Hirsch é um sujeito irônico e desencantado com a vida, muito crítico de si e dos outros, descrente das boas intenções e assim por diante. Além de ser um veterano do Exército, Hirsch também é escritor publicado e consolidado (com livros que falam justamente da vida nessa cidade do interior à qual ele volta relutantemente), uma atividade que, no entanto, ele não encara com bons olhos, chegando mesmo a recusar tal posição, chegando mesmo a afirmar que já não escreve, que isso pertence ao passado e assim por diante. 


Como tantos outros escritores, Hirsch é um leitor de Faulkner. São vários os leitores de Faulkner, desde o filho de Elizabeth Costello, em Coetzee; Fredric Jameson, que fala de Faulkner como o escritor do "agora"; ou Jean Echenoz quando escreve sobre Ravel. Logo no começo do filme, Hirsch se estabelece em um quarto de hotel: quando desfaz a mala e organiza seus poucos pertences, mostra para a câmera os livros que leva consigo e, ali, em primeiro plano e em lugar de destaque, Faulkner - o escritor desse mundo de desconfiança e rispidez no qual vive Hirsch.   

 

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Arte da ignorância


Em muitos trabalhos de Agamben, a tensão entre saber e não-saber foi muitas vezes aproximada da tensão entre potência e ato, ou seja, entre a possibilidade de fazer algo e a possibilidade de escolher não fazê-lo. 

Em Opus Dei, livro de 2012, glosando a interpretação latina dos Pais da Igreja da filosofia aristotélica (dentro do escopo mais amplo daquilo que denomina “arqueologia do ofício”, ou seja, uma investigação da matriz conceitual da ontologia moderna a partir das traduções de termos-chave do grego para o latim), Agamben escreve: “Como Aristóteles não se cansa de repetir contra os megáricos, tem verdadeiramente uma potência aquele que pode tanto colocá-la quanto não colocá-la em ato”; completando mais adiante com um exemplo: “O Bartleby de Melville, ou seja, por definição um homem que tem a potência de escrever, mas não pode exercê-la, é a perfeita das aporias da ética aristotélica” (p. 100, 103).

Assim como o saber precisa dar conta do não-saber – a partir de uma “arte da ignorância” que exercite a noção de que as certezas são historicamente situadas e, por isso, oscilantes – a potência precisa dar conta da própria suspensão ou esvaziamento, do reconhecimento de certa não-continuidade em sua vigência. Ainda em Opus Dei, Agamben escreve que a “relação com a privação”, ou seja, com a possibilidade de não-fazer (ou não-saber), “é essencial para Aristóteles, porque é só através dela que a potência pode existir como tal, independentemente de seu passar ao ato” (p. 99).