quinta-feira, 19 de junho de 2025

A lógica rigorosa


"Cada nível de organização do texto obedece a uma lógica rigorosa; além disso, esses níveis são estritamente coordenados entre si. Retenhamos um único exemplo: os contos fantásticos e 'sérios' são sempre contados na primeira pessoa, de preferência pela personagem principal, sem distância entre o narrador e sua história (as circunstâncias da narração aí desempenham um papel importante), como em 'O demônio de perversidade', 'O gato negro', 'William Wilson', etc. 

Por outro lado, os contos 'grotescos', como 'O rei peste', 'O diabo no campanário', 'Lionizing', 'Quatro bestas em uma', ou os contos de horror, como 'Hop-Frog' e 'A máscara da morte escarlate', são contados na terceira pessoa ou por um narrador testemunha, e não ator; os acontecimentos são distanciados, o tom é estilizado. Nenhuma sobreposição é possível" 

(Tzvetan Todorov, "Os limites de Edgar Allan Poe", Os gêneros do discurso, trad. Nícia Bonatti, Unesp, 2018, p. 239).

sábado, 7 de junho de 2025

Papa engrossada, mingau de aveia




"Em casa de uma família instruída, à mesa do chá, falava-se de literatura, de coisas como fantasia e fábula. E lamentava-se que tudo isso estivesse cada vez mais pobre e mais pálido entre nós. Eu lembrei-me de uma observação muito característica do falecido Píssemski, que dizia que o empobrecimento notado na literatura estava sobretudo relacionado com a multiplicação das estradas de ferro; na sua opinião, elas são muito úteis para o comércio, mas às belas-artes fazem mal.

'Hoje em dia, a pessoa viaja muito, mas à maior velocidade e sem problemas - dizia Píssemski -, e por isso não junta nenhuma impressão forte, e não há nada que olhar, nem tempo para isso, pois tudo passa voando pela janela. Daí, a sua experiência é pobre. Mas, antigamente, quando ias de Moscou a Kostromá de carruagem e saía-te um cocheiro canalha, e os outros passageiros eram todos uns insolentes, e o dono da hospedaria era um velhaco, e a cozinheira da casa era a imundície em pessoa - vê aí, então, quanta variedade havia para a tua contemplação. Com o coração já pra não aguentar mais nada, aí tu pescavas uma imundície qualquer na sopa e dizias umas poucas e boas à tal cozinheira, e ela, em resposta, vinha para cima de ti com dez vezes mais impropérios; tu, então, simplesmente não tinhas como escapar de impressões. E elas juntavam-se em ti numa nuvem grossa, que nem a papa engrossada a fogo lento; pois então, aí a escrita só podia sair-te encorpada, concentrada, também; hoje em dia, tudo isso é à moda ferroviária: pegas o teu prato, e sem perguntas; comes, mas não dá nem tempo de mastigares; din-din-din e fim de conversa; recomeças a viagem, e a única impressão que colhes é que o empregado da taberna te roubara no troco, mas já não tens tempo para uma boa troca de palavras fortes com ele' "(Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 83-84)

*

"Sua prosa não tem primavera nem verão, não tem outono nem inverno, não é preta nem vermelha; ela escorre para o estômago feito mingau de aveia sem sal. Mas, como vocês não vivem mais como cervejeiros, defumadores, feirantes e ciganos, como têm medo do cajado do tempo e de seu próprio desespero, não têm mais o que dizer. 

A época em que louvavam a própria fome, em que os jovens escritores se insurgiam contra presidentes, aquela em que vocês faziam a revolução, essa época passou! Foi-se o tempo em que Hamsun vadiava por Nova York, em que Sillanpää não pôde ir buscar seu prêmio Nobel, porque ele, que vivia de fato, tinha sete filhos e nem sequer um único tostão no bolso do casaco para a viagem. E foi-se o tempo em que vocês cantavam seus versos ao som do alaúde. De um povo de poetas e pensadores fez-se um povo de segurados, de funcionários públicos e de membros do partido, uma paisagem de fracos, de homens sem nenhuma paixão carregando pastinhas. De um povo de entusiastas fez-se um povo de representantes comerciais!" 

(Thomas Bernhard, "Uma palavras aos jovens escritores", 18 de janeiro de 1957, Na pista da verdade: discursos, cartas, entrevistas e artigos, trad. Sergio Tellaroli, Todavia, 2015, p. 33)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sementes bárbaras


"Para Vico, a Idade Média representava o novo mergulho da humanidade no fresco elemento da fantasia, uma retomada da capacidade de imaginar, mitificar e simbolizar que é aquela dos bárbaros. Depois do excesso de reflexão que havia caracterizado a época do império romano, a humanidade se refez jovem, tinha abandonado a prosa e entre os novos bárbaros do norte retomou o poetizar homericamente. 

Na Silésia, nação de camponeses, assegurava solenemente Vico, todos nascem poetas. Vico não conhecia naturalmente nem o Beowulf, nem o Nibelungenlied, nem a Chanson de Roland, mas uma vaga ideia de cantares espanhóis e italianos bastava para que confirmasse suas intuições. Uma imagem bem diferente daquela barbárie supersticiosa, sem redenção fora da sobrevivência dos últimos restos clássicos, que é a intuição fundamental de Gibbon. 

A Europa moderna não era para Vico um renascimento do mundo antigo, segundo a concepção do Renascimento proposta por Gibbon, mas um desenvolvimento de sementes bárbaras."

(Arnaldo Momigliano, "Edward Gibbon fuori e dentro la cultura italiana", Sesto contributo alla storia degli studi classici e del mondo antico, 1980, p. 245-246)

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Hipérion



1) Para Agamben (ainda no ensaio dedicado ao “dizível e a ideia”), a “traduzibilidade” é o que garante a movimentação do pensamento através do tempo, pois está situada “no limiar que une e divide os dois planos da linguagem”, o semiótico e o semântico (o plano da materialidade e o plano do sentido). Por isso Walter Benjamin destacou a “relevância filosófica” da tradução, que Agamben desenvolve minuciosamente. 

2) A possibilidade de traduzir é, em grande medida, uma postura diante do mundo e diante do outro, do diferente, do distante (por isso o caso de Joseph Conrad é tão paradigmático para o século XX, despertando tantos comentários e reutilizações narrativas). Nessa perspectiva, a “traduzibilidade” faz parte da consciência que preciso ter de que minha língua não é o centro do mundo, ou a instância reguladora dos afetos e dos horizontes. Reconheço a limitação do meu mundo ao exercitar o desejo de traduzir aquilo que ainda não conheço.

3) É nesse ponto do traduzível que as reflexões de Agamben sobre Hölderlin e sobre a linguagem se encontram, apesar de vindas de contextos e publicações diversas: isso porque é a partir também da tradução que Hölderlin se situa diante do próprio tempo, da própria época; para além de uma contemporaneidade compulsória com certas figuras da mesma época (Hegel, Napoleão), Hölderlin estabelece, pela via da tradução, uma contemporaneidade não-contemporânea com a Antiguidade, especificamente com Píndaro e Sófocles. 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

O dizível e a ideia


1) No ensaio dedicado ao “dizível e a ideia”, do livro O que é a filosofia?, Agamben está interessado naquilo que “quase” pode ser dito ou expresso, o ponto em que a “certeza” se anuncia, sem completar definitivamente seu ciclo. A ideia leva o dizível em direção a uma abstração com relação à língua. Essa língua, contudo, não diz respeito a um idioma específico, e sim à possibilidade de “todos os nomes e todas as línguas”. 

2) Como exemplo, Agamben recorre ao historiador Arnaldo Momigliano e sua ideia de que “o limite dos gregos era que eles não conheciam as línguas estrangeiras”, o que constitui, de resto, o limite de todo pensamento unilateral. Por conta disso, Agamben propõe a hipótese de que “o elemento linguístico próprio da ideia” não é simplesmente o “nome”, mas a tradução, “ou aquilo que é traduzível nele”. A tradução, portanto, surge como uma tarefa que é tanto ética quanto estética, atravessando as diferentes esferas que regulam a convivência dos seres em comunidade. 

3) E também a tradução se desenvolve sobre um paradoxo: entendemos o sentido geral de um texto – a trama de romances como Dom Quixote ou Moby Dick, por exemplo – quando lemos uma tradução; mas através da leitura também “entendemos” que nenhuma daquelas palavras foi escrita pelo autor. A consciência da “artificialidade” da tradução, no entanto, não impede o leitor de fruir o texto, de carregá-lo consigo para o resto da vida, costurando-o à própria subjetividade (como Jorge Luis Borges, que leu o Quixote primeiro em inglês, quando criança, e depois declarou que o original espanhol sempre lhe pareceu como uma tradução).

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Ainda Hölderlin


As reflexões de Agamben em sua crônica sobre Hölderlin podem ser posicionadas no contexto mais amplo de sua preocupação filosófica com a linguagem. Em vários momentos de sua obra – como, por exemplo, em Infância e história – Agamben coloca em primeiro plano a preocupação com a linguagem. Como a linguagem pode “existir”? Como ela pode ser acessada, o que significa dizer “eu falo”? Em O que é a filosofia?, a linguagem é abordada especialmente pelo viés da “experiência”, pela perspectiva de uma investigação do “ter-lugar” da linguagem, e é por essa razão que os dois livros recentes de Agamben são complementares: a crônica da vida de Hölderlin exemplifica e torna mais palpável o conjunto abstrato de proposições do livro sobre a filosofia.

*

Para Agamben, a filosofia é um evento ontológico tornado possível pela linguagem – o “evento” diz respeito àquilo que é reconhecido coletivamente, enquanto o “ontológico” diz respeito à possibilidade do ser se reconhecer durante o uso da linguagem. Falar, escutar, escrever são atividades ambivalentes, operando na linha tênue que separa o único do múltiplo, o sujeito da comunidade. No primeiro ensaio do livro O que é a filosofia?, intitulado "Experimentum vocis", acompanhamos a descrição da estratégia de acoplamento da linguagem com a “metafísica ocidental”, o discurso que regula aquilo que pode ser imaginado para além da realidade. O indivíduo só se pode reconhecer através da linguagem, e é ela que articula a relação entre mundo e palavra, ontologia e lógica, “eu” e “outro”.

sábado, 10 de maio de 2025

Crônica de Hölderlin


1) Em A loucura de Hölderlin – crônica de uma vida habitante 1806-1843, Agamben retorna à literatura e propõe um estudo sobre o “poeta louco”. O primeiro ponto a salientar é que não se trata de uma reflexão que lida exclusivamente com Hölderlin, pelo contrário: seu percurso é contrastado com aqueles de Goethe e Napoleão, o que oferece uma sorte de pano de fundo histórico aos comentários de Agamben; além disso, os gêneros da “biografia” e da “crônica” são mobilizados (e questionados em seus limites) como ferramentas para uma abertura da história e da sucessão temporal; por fim, etiquetas classificatórias como “loucura” e “inspiração” recebem um tratamento de desnaturalização, ou desautomatização, dentro do qual o caso de Hölderlin é usado como exemplo de um radical atravessamento entre poesia e filosofia. 

2) O que dá consistência ao projeto é a dedicação verticalizada de Agamben aos textos de e sobre Hölderlin – poemas, biografias, relatórios médicos e cartas, dele e de terceiros. O livro é dividido em quatro partes principais, começando com um Limiar e um Prólogo, estendendo-se por uma Crônica (1806-1843) (a seção mais longa) e encerrando com um Epílogo. Mais uma vez a figura de Walter Benjamin, referência constante em todo o percurso intelectual de Agamben: Benjamin aparece logo no início de A loucura de Hölderlin para auxiliar Agamben na reflexão acerca da diferença entre “crônica” e “história crítica”. A dicotomia, contudo, é logo desfeita, pois Agamben argumenta que a escolha aparentemente “neutra” da crônica (expor fatos e eventos dentro de uma estrutura cronológica) já pressupõe uma tomada de posição, um escrutínio, um projeto.

3) Partindo de Benjamin, Agamben chega a uma ambivalência que guiará seu livro até o fim: “crônica” e “história” são gêneros diversos, mas complementares, com procedimentos que se fortalecem mutuamente através do contraste. “O cronista não inventa nada”, escreve Agamben, e, no entanto, “não tem necessidade de verificar a autenticidade de suas fontes”, às quais o historiador não pode, ao contrário, “em nenhum caso, renunciar”. O “único documento” que interessa ao cronista “é a voz”, a sua e aquela da qual lhe ocorreu ouvir, por sua vez, “a aventura, triste ou alegre, a que se está referindo”. É essa “voz” que se busca recuperar no caso de Hölderlin, embora as “fontes” (cartas, biografias, registros notariais) estejam sempre presentes.

domingo, 4 de maio de 2025

Aquele que conduz


1) Nos anos da Segunda Guerra Mundial, quando Hermann Broch está escrevendo A morte de Virgílio, Gianfranco Contini está preparando sua edição das Rimas de Dante. A partir desse trabalho, Contini começa a desenvolver uma de suas principais ideias críticas: o contraste entre "plurilinguismo" e "monolinguismo" na literatura, algo que ele traduz como um contraste entre Dante e Petrarca, entre um movimento de criação no interior da língua que privilegia a transformação e um movimento de criação que privilegia a manutenção, ou ainda, a circunscrição léxica, sintática e rítmica. 

2) O romance de Broch, publicado em 1945 - seis anos antes da morte do autor -, é realizado sob o decisivo influxo de James Joyce e de seu Ulisses (mais plurilinguista que o Ulisses, só o Finnegans Wake, que é de 1939). A partir do romance de um irlandês que resgata um personagem grego, Broch - um austríaco - faz um romance que resgata um personagem latino, o poeta ocidental por excelência, Virgílio, aquele que - nas palavras de T. S. Eliot - torna possível o cânone, mesmo para aqueles que trabalham em uma língua que não parte da matriz latina virgiliana. 

3) É possível dizer que Virgílio não existiria para Broch sem a intervenção de Dante, sem a intervenção da Divina Comédia, que leva a Eneida adiante; é o próprio Broch quem insiste na relação, desde as epígrafes do romance: as duas primeiras da Eneida, a terceira e última da Divina Comédia (do Inferno, canto XXXIV, precisamente quando Dante fala de Virgílio: Lo duca ed io per quel cammino ascoso / Entrammo a ritornar nel chiaro mondo (o uso que Dante faz da palavra "Duca" é muito interessante: do latim "ducem", "dux", significa "aquele que conduz", através do baixo grego (ou bizantino) "doúka" ou "doúkas", "chefe militar de uma cidade ou província").

sexta-feira, 25 de abril de 2025

A literatura e seus limites



Meu último livro, A literatura e seus limites: romances com imagens, está em promoção no site da Editora da UFSC. Como não poderia deixar de ser, recorro a W. G. Sebald para falar dos "romances com imagens", mas não apenas ele: a partir de Sebald, armo um eixo de análise através dos primeiros anos do século XXI, comentando romances de Ben Lerner (10:04), Valeria Luiselli (Arquivo das crianças perdidas) e Katja Petrowskaja (Talvez Esther).

sábado, 19 de abril de 2025

Um homem silencioso


Em 10 de junho de 1975, no jornal L'Ora, sai uma entrevista de Italo Calvino feita por Ferdinando Scianna - a entrevista é publicada com o título "Un silenzioso che ha molto da dire", ou seja, "Um silencioso que tem muito a dizer". Scianna, entre outras coisas, pergunta a Calvino o que ele acha da recente candidatura política de Leonardo Sciascia (para se tornar consigliere comunale em Palermo). Calvino, com outras palavras, diz que justamente pelo fato de Sciascia ser (ou poder ser) um político atípico ele poderá fazer bem à política italiana. "Acho que sou um dos amigos de Sciascia", diz Calvino, "mas a nossa amizade certamente não se pode medir pelo número de palavras trocadas. Sciascia é um homem silenciosíssimo": em um mundo no qual todos falam sempre tanto, completa Calvino, "a entrada na política de um homem silencioso, mas que tem muitas coisas a dizer, é um fato enormemente positivo" (a entrevista está no livro Sono nato in America... Interviste 1951-1985, de Calvino (Mondadori, 2022, p. 212-215) e também no Carteggio 1955-1985 de Calvino e Sciascia (Mondadori, 2023, p. 247-250)).

domingo, 13 de abril de 2025

Algodão, batalhas


Já no final de Autobiografia do algodão, Cristina Rivera Garza escreve:

"A verdade é que passamos vários verões no carro, dirigindo por um longo tempo naquelas estradas longas e retas pela fronteira entre o México e os Estados Unidos. Procurávamos os campos de algodão, seus vestígios. Se já não estavam mais lá, queríamos ver o que estava em seu lugar, todos aqueles anos depois. Queríamos viajar do lado mexicano, mas os campos de algodão do passado haviam se tornado os campos de batalha mais quentes [los campos de batalla más álgidos] da chamada guerra contra o narco. De Mexicali, passando por El Paso, mas especialmente em torno de Matamoros, a terra do algodão é agora a terra do sangue e da tortura, a terra das valas a céu aberto, a terra onde se semeiam desaparecidos e se colhe impunidade, desgraça, esquecimento. Embora tenhamos feito todo o possível, nunca chegamos lá. Nunca conseguimos pisar naquele mítico K-61, espaço 124 onde começa, em um inverno de muita chuva, um inverno cheio de lama e esperança, a segunda parte desta história" (trad. Silvia Massimini Felix, Autêntica Contemporânea, 2025, p. 313)

As fronteiras, as viagens e as estradas - ecos claríssimos de 2666, de Roberto Bolaño, mas também a paisagem espectral de Juan Rulfo (a quem Rivera Garza dedica todo um livro, que comentei aqui). Mas como descrever as diferenças, tão claras durante a experiência de leitura, entre o tratamento da fronteira/viagem que faz Bolaño e aquele que faz Rivera Garza? O primeiro mantém o nível dos personagens e da fabulação sempre em primeiro plano, enquanto a segunda faz a narrativa ser atravessada continuamente por um nível "externo", o nível do "real" da narradora, que compartilha nome, condições e localização espaço-temporal com a autora que assina o livro; Bolaño mais "mostra" do que "diz", já que suas cenas guardam sempre um viés de enigma, de obliquidade, certa suspensão poética acerca da intenção de apresentar certos personagens ou diálogos; Rivera Garza, por sua vez, é aberta e direta em suas conexões e declarações, o romance é, claramente, uma reflexão sobre o presente, uma mistura de sociologia, antropologia e ficção, os bastidores fazem parte do trabalho artístico.  


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Westminster Road



1) Em um dos episódios de seus Souvenirs d'égotisme (breve livrinho com "memórias de um egotista", que não deve ser confundido nem com os Diários, ou com sua obra autobiográfica principal, Vie de Henry Brulard), Stendhal conta de sua passagem por Londres, em 1821. Ele estava profundamente entediado em Paris, escreve para seu banqueiro para recolher um pouco de dinheiro, e parte para Londres - entusiasmado com a possibilidade de ver Shakespeare, que ele idolatra, nos palcos "originais". 

2) Como acontece com frequência nos escritos de Stendhal - em qualquer uma das cidades em que ele está -, alguém organiza uma excursão a um prostíbulo: o que faz a descrição da excursão londrina particularmente interessante é o possível "perigo de morte" envolvido na operação (um momento das memórias de Stendhal que faz pensar naquilo que Sebald, muito a partir de Stendhal, faz em Vertigem - aliás, depois de Vertigem, é difícil - para mim - ler Stendhal sem pensar em Sebald e nos temas de Stendhal selecionados e reconfigurados por Sebald).

3) Stendhal diz que as "meninas" moravam em um bairro perdido da cidade, "Westminster Road", o lugar perfeito para que "quatro marinheiros pudessem espancar um pouco alguns franceses". "Dois ou três ingleses" tentaram avisar que provavelmente era uma armadilha - "sabe que vão levar vocês uma légua distante de Londres?". Mas é evidente que parte da graça estava justamente no perigo: a carroça atravessa a ponte, a via fica estreita, as casas somem e assim por diante. "Não fosse o tédio do dia anterior, sem espetáculos, não teria ido", escreve Stendhal, e acrescenta, já diante da casa: "sem a ideia do perigo, não teria entrado". No fim, nada aconteceu; a noite passou como esperado. 

domingo, 2 de março de 2025

Mandrione



1) Muitas vezes eu penso no escritor que Juan Rodolfo Wilcock poderia ter sido e não foi: esse tipo de exercício mental não acarreta apenas uma lamentação do tipo "gostaria que ele tivesse abordado tais e tais temas", mas também um exercício de segundo grau que leva à reflexão sobre as razões que levaram Wilcock a escrever do jeito que escreveu, selecionando os temas que selecionou e assim por diante (um escritor imaginativo ao extremo, que muitas vezes chegava a tocar o surrealismo, o absurdo, o grotesco, o delirante, algo que, de resto, se relaciona diretamente com seu talento fora do comum para os idiomas: para exercitar essa capacidade, é natural que Wilcock se direcione para os excessos semânticos e sintáticos, e não tanto para o registro "documental" ou "etnográfico").

2) Nos anos 1970, Wilcock viveu em Roma, no número 54 da via Demetriade, de frente para as tumbas da via Latina, hoje no interior do parque arqueológico da Appia Antica. Wilcock caminhou exaustivamente pelas ruelas mais escondidas de Roma, experiência citadina que, nos romances (especialmente em I due allegri indiani), é transformada pela já referida perspectiva surrealista típica do autor (em textos para jornais, contudo, Wilcock é mais direto: chega a falar dos precários barracos de lata montados ao longo do Acquedotto Felice). Quando vejo as fotografias de Franco Pinna no vicolo del Mandrione vejo uma espécie de mundo paralelo, documental/etnográfico, àquele mundo de Wilcock (as fotografias de Pinna são de 1956, um ano antes de Wilcock se mudar definitivamente para a Itália; Pinna e Wilcock morreram no mesmo ano, 1978).

3) Na sua coluna na revista Vie Nuove, em maio de 1958, Pasolini escreve: "Lembro um dia, dirigindo pelo Mandrione com dois amigos de Bolonha, fiquei consternado com a visão de algumas crianças brincando na lama imunda. Estavam vestidos com trapos; corriam para lá e para cá, sem as regras de nenhum jogo: moviam-se, agitavam-se como cegos, naqueles poucos metros quadrados onde nasceram e onde sempre permaneceram, sem conhecer mais nada do mundo, exceto a casinha onde dormiam […] A vitalidade pura que está na base dessas almas significa uma mistura de puro mal e puro bem: violência e bondade, maldade e inocência, apesar de tudo".

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Corpo e sociedade


Em seu livro dedicado aos primeiros séculos da Era Comum (Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo), Peter Brown retoma e comenta uma série de textos e proposições dos primeiros bispos da Igreja Católica, entre eles Ambrósio de Milão, mestre de Santo Agostinho, que impressionou este último com sua capacidade de ler em silêncio. Na discussão sobre Ambrósio, chamou minha atenção o modo como Brown enfatiza sua preocupação com os limites e as fronteiras: a mentalidade de Ambrósio, argumenta Brown, é organizada a partir de contraposições muito nítidas que devem permanecer nítidas e demarcadas: santidade x pecado, virgindade x concupiscência, Igreja x Mundo, homem x mulher, e assim por diante. Vivendo em Milão, fronteira por excelência, em fins do século IV, para Ambrósio a discussão sobre os limites era uma forma de falar, simultaneamente, dos corpos dos fiéis, da relação entre Igreja e Estado e da posição dos funcionários eclesiásticos no interior da máquina imperial. Em Ambrósio está a semente da defesa dos dogmas, algo que ficará ainda mais dramático com as "invasões bárbaras" que já se anunciavam: justamente porque as fronteiras do mundo real estão sendo atacadas, é necessário vigiar e proteger as fronteiras internas com ainda mais rigor.

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Não sei até que ponto Borges estava ciente dessa articulação entre virgindade cristã (especialmente feminina, por conta da Virgem Maria, que Ambrósio singularizava como modelo para todos, homens e mulheres) e fronteiras do Império quando escreveu seu conto "Historia del guerrero y la cautiva" (publicado em 1945 no livro El Aleph). O fato é que, no conto, os dois temas estão cruzados: de um lado a mulher, a cativa (que são duas, a avó de Borges e a mulher "de Yorkshire" que se "transformou" em índia), e de outro o bárbaro invasor das fronteiras, Droctulft, que também "se transforma", já que morre defendendo Roma (como conta Paulo, o Diácono, por meio de Benedetto Croce, citado por Borges logo no início do conto). É digno de nota também que Borges faça o cruzamento das histórias também a partir da linguagem, do idioma: o bárbaro que se transforma em civilizado defendendo Ravena recebe, depois de morto, um epitáfio em latim que, provavelmente, não conseguiria entender; a avó de Borges, por sua vez, conversa em inglês com a mulher transformada em índia, que acessa o idioma com dificuldade por conta dos quinze anos que permaneceu sem uso (é a mulher quem indica a um soldado que deseja falar com a avó de Borges).


domingo, 23 de fevereiro de 2025

As cartas e o palco


Ainda nos comentários de Philip Roth sobre o Herzog de Saul Bellow, ele escreve: "Este livro de mil delícias não oferece nenhuma maior do que essas cartas, e nenhuma chave melhor para destrancar a notável inteligência de Herzog e penetrar nas profundezas do tormento que ele sente diante das ruínas de sua vida. As cartas são a demonstração de sua intensidade, fornecem o palco para seu teatro intelectual, o espetáculo de um só artista, no qual é menos provável que desempenhe o papel de bobo" (p. 394).

*

1) A insistência tanto de Bellow quanto de Roth (o primeiro, na narrativa; o segundo, no comentário) no tema da carta me faz pensar em uma conferência de Agamben dada em 1984, "A coisa mesma", cujo texto é dedicado a Jacques Derrida e à memória de Giorgio Pasquali. Nesse ensaio, Agamben fala da Carta VII de Platão, "um texto cuja importância para a história da filosofia ocidental está ainda longe de ter sido devidamente avaliada".

2) Em torno dessa carta (e também de toda a epistolografia platônica) é colocada em questão toda a história da filosofia e, de certa forma, do próprio pensamento ou mesmo da possibilidade do pensamento: depois dos ataques de Meiners, Karsten e Ast, escreve Agamben, as cartas de Platão "foram pouco a pouco expulsas da historiografia filosófica". No século XX, contudo, a tendência começa a se inverter, continua Agamben, mas a desconexão prévia - a resistência contra as cartas de uma forma geral - se faz notar e torna o trabalho em torno a essas mesmas cartas mais difícil.

3) O que se perdeu, escreve Agamben, foi "a relação viva entre o texto a tradição filosófica posterior, de tal modo que, por exemplo, a Carta VII, com seu denso excursus filosófico, apresentava-se agora como um bloco montanhoso árduo e isolado, a cuja penetração se interpunham obstáculos quase insuperáveis". A carta, de resto, finaliza Agamben, tira parte de sua força justamente do fato de ser o registro de um fracasso no palco de um teatro intelectual: "Platão, já velho - com 75 anos -, evocou aos amigos de Dião seus encontros com Dionísio e a aventura fracassada de suas tentativas políticas sicilianas".


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

As cartas de Herzog





1) Em um ensaio sobre Saul Bellow ("Relendo Saul Bellow", Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura, 1960-2013, trad. Jorio Dauster, Cia das Letras, 2022, p. 380-401), Philip Roth comenta o romance Herzog, de 1964, apontando que quase não há ação ou drama para além daquela que ocorre no cérebro do protagonista - nesse sentido, poderia ser lido ao lado do Monsieur Teste, de Paul Valéry, que já rendeu muitas associações pela via do cérebro, da cabeça e do crânio (via Beckett, Descartes, Piglia e Agamben, por exemplo).

2) Roth aponta que o fluxo de consciência de Bellow em Herzog não está aparentado com aqueles de Faulkner ou Virginia Woolf (ou, ao menos, não exclusivamente): ele vê uma afinidade maior com o Diário de um louco, de Gógol: a principal estratégia narrativa compartilhada por Bellow e Gógol, escreve Roth, é a escrita de cartas (no caso de Gógol, é um cachorro quem teria escrito o maço de cartas que o narrador encontra, e o cachorro pertence à mulher pela qual está apaixonado - tudo tão Kafka e Felice (via Canetti), tudo tão Sloterdijk e Heidegger (via Regras para o parque humano)).

3) O diferencial do romance de Bellow, escreve Roth (p. 394), está na intensidade do uso das cartas e na liberdade ensandecida com a qual o narrador seleciona seus destinatários: a mãe morte, a amante viva, a primeira esposa, o presidente Eisenhower, o chefe da polícia de Chicago, Nietzsche, Heidegger ("Caro doktor professor, gostaria de saber o que o senhor quer dizer com a expressão 'a queda no cotidiano'") e, por fim - resgatando, de certa forma, o magistrado Daniel Paul Schreber de Freud, Lacan e Deleuze -, o próprio Deus ("tenho desejado cumprir sua vontade insondável").

sábado, 8 de fevereiro de 2025

O irracional


"A prova mais surpreendente da reação contra o Iluminismo [grego] encontra-se nos processos bem-sucedidos movidos contra intelectuais, a propósito de questões de natureza religiosa, ocorridos em Atenas no último terço do século V a.C. Em torno de 432 a.C., a descrença no elemento sobrenatural e o ensino da astronomia tornaram-se ofensas passíveis de punição.  

Os trinta e tantos anos que se seguiram testemunharam uma série de processos de heresia; algo único na história de Atenas. As vítimas incluíam a maior parte dos líderes do pensamento progressista: Anaxágoras, Diágoras, Sócrates, quase com certeza Protágoras e talvez Eurípides. Em todos os casos, com exceção do último, a ação judicial teve sucesso: Anaxágoras pode ter sido multado e banido; Diágoras escapou em tempo; Protágoras ao que parece também; Sócrates, que poderia ter feito o mesmo ou pedido uma sentença de expulsão da cidade, escolheu ficar e beber a cicuta. 

Todos eles eram pessoas famosas. Quantos cidadãos obscuros podem ter sofrido por suas opiniões é algo que não sabemos. Mas o que possuímos basta para provar que a grande idade do Iluminismo grego foi também, como nossos próprios tempos [Dodds escreve em 1949], uma idade de perseguição  -  com estudiosos sendo banidos, obscurecimento do pensamento e até mesmo (se acreditarmos na tradição a respeito de Protágoras) queima de livros"

E. R. Dodds. Os gregos e o irracional. Trad. Pedro Oneto, Escuta, 2002, p. 191. (é uma pena que um livro tão bom esteja acessível no Brasil em uma edição tão ruim: a tradução está cheia de erros, vários nomes gregos não foram traduzidos, vários títulos e termos estrangeiros estão sem itálico, várias vírgulas completamente equivocadas, vários plurais sem o "s", e o mais sério: várias vezes o período "d.C." é trocado por "a.C.", tornando a coisa toda muitíssimo confusa)

domingo, 2 de fevereiro de 2025

500 dólares para Saer


Em suas memórias (El enigma del oficio. Memorias de un agente literario), Guillermo Schavelzon fala do dia em que deu, como adiantamento para publicação de um original (Responso, seu primeiro romance), 500 dólares para Juan José Saer. Uma semana depois, Saer reaparece pedindo mais - diz que perdeu tudo no jogo. O detalhe é que, na primeira aparição, Saer disse que precisava do dinheiro naquele dia, impreterivelmente, pois no dia seguinte pegaria o navio que o levaria para Paris:

A la mañana siguiente, vuelve a asomar Saer por el agujero del suelo, y me dice que había perdido todo el dinero, y que como esa tarde salía su barco, necesitaba algo más.

No recuerdo qué le contesté, aunque desde mi ingenuidad seguramente pensé en un asalto, un robo, un accidente. Él fue sincero: lo había perdido jugando a las cartas. No entendía cómo alguien podía jugar con el dinero que necesitaba para viajar, no entendía lo que era un jugador y, claro, no había leído Responso, la novela sobre un jugador compulsivo. (p. 36).

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Um caso espírita, 2

Tábua de Giovanni Morelli

1) O momento em que a velha cega percorre o rosto de Gibbon com as mãos é o ápice do conto de Leskov: o momento de riso e humor (sem dúvida uma dimensão da "incontinência" meticulosamente pensada por Leskov: o riso corre solto como poderia fazê-lo a merda de um rosto que parece um ânus) e, também, o momento em que a crença no sobrenatural da princesa caia por terra: a senhora Genlis falhou, não ofereceu o oráculo que ela gostaria.

2) A cena toda é, também, uma lição de humildade - como aquela que Montaigne arma em seu ensaio sobre a experiência, também articulada em torno de um envio em direção à merda e ao cu, quando ele escreve que mesmo no trono mais alto, estamos sempre sentados sobre nosso cu (Et au plus eslevé throne du monde si ne sommes assis que sus nostre cul). E também uma reflexão sobre os prazeres baixos e a onipresença do escatológico em nossos processos psicológicos, como mostrará Freud poucas décadas depois da publicação do conto de Leskov: desde a Psicopatologia da vida cotidiana até a "dreckologia" (ou ainda, a "merdologia" de que fala  Freud em suas cartas para Fliess) que precede até mesmo a Interpretação dos sonhos, já que data de 1897.

3) A cena de Leskov, na qual um rosto se transforma em cu, pode ser vista também como uma sorte de antecipação artística (o próprio Freud não disse que foi nos poetas do passado que encontrou a doutrina psicanalítica?) da crítica aos procedimentos de controle e padronização dos corpos e rostos, sobretudo com fins policiais: não só a fisiognomonia de Lavater (e também de Goethe), mas também as impressões digitais de Francis Galton (ou mesmo a frenologia de Cesare Lombroso - e são absolutamente contemporâneos, já que Leskov nasceu em 1931 e Lombroso, em 1935), tudo isso evidentemente amarrado narrativamente por Carlo Ginzburg em seu ensaio de 1979 sobre o paradigma indiciário (que, de resto, se ocupa extensamente de Freud e de Giovanni Morelli).  


quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Um caso espírita, 1


Ainda no "caso espírita" de Leskov, o que de imediato chama a atenção é que se trata de uma narrativa sobre a leitura: a princesa recorre às obras da senhora Genlis sempre que precisa de alguma resposta ou direcionamento para a vida, ação que ela inclusive recomenda a outros, como, por exemplo, ao narrador (e nesse ponto específico, de buscar o futuro da vida na leitura de um fragmento textual escolhido ao acaso, Leskov encontra um eco latino-americano em Prisão perpétua, de Ricardo Piglia, que conta com uma personagem que consulta o I-Ching para saber se precisa consultar o I-Ching).  

O procedimento dá certo algumas vezes - realmente, quando um personagem vai aos livros e os abre ao acaso, surge uma frase que, com boa vontade, serve à situação. O ponto central do conto, no entanto, está no momento em que o procedimento não dá certo: a filha da princesa, inocente, sempre muito protegida e guardada dentro de casa, é chamada para provar a confiabilidade do procedimento. O trecho que lhe cabe, no entanto, não tem nada de inocente: trata-se de um trecho das memórias da senhora Genlis no qual ela descreve seu encontro com o historiador (1737-1794), notório por sua gordura: 

Gibbon é de pequena estatura, extraordinariamente gordo e tem um rosto admirabilíssimo. Neste, não era possível distinguir nenhum traço. Não se via nariz, não se viam olhos, nem boca; duas bochechas gordurentas, gordas, parecidas sabe lá o diabo com quê, absorviam tudo... Elas eram tão inchadas, que se haviam afastado de qualquer senso de proporcionalidade minimamente digna para as maiores bochechas do mundo; qualquer pessoa que as visse, deveria perguntar-se: por que não foi essa coisa colocada no seu lugar de direito? Eu caracterizaria o rosto de Gibbon com uma única palavra, se me apenas fosse possível dizer tal palavra. O duque de Lausanne, que era íntimo de Gibbon, levou-o, certa vez, à casa de Mme. Dudeffand. Ela estava já cega e tinha o costume de tatear com as mãos o rosto das pessoas notáveis que lhe eram apresentadas. Desse modo, adquiria uma ideia bastante fiel dos traços do novo conhecido. Pois ela aplicou o mesmo método tátil a Gibbon, e isso foi uma desgraça. O inglês aproximou-se da poltrona e com toda a bonacheirice ofereceu o seu admirável rosto ao toque da anfitriã. Mme. Dudeffand estendeu para ele as suas mãos e passou os dedos por aquele rosto esférico. Ela procurava esforçadamente alguma coisa em que parar, mas isso não foi possível. Então, o rosto da senhora cega primeiramente expressou espanto, depois fúria e, por fim, ela, retirando bruscamente as mãos com nojo, deu um berro: "Que brincadeira mais infame!" (p. 21-22)

sábado, 11 de janeiro de 2025

Um caso espírita



"O espírito da senhora Genlis", conto publicado por Nikolai Leskov em 1882, tem como epígrafe uma frase de Antoine Augustin Calmet: "Às vezes, é mais fácil invocar um espírito do que livrar-se dele", bastante adequado ao tom irônico da narrativa (que tem como subtítulo: "um caso espírita"). O narrador informa que a história se passa em um inverno da década de 1860, auge da febre das mesas girantes e fenômenos assemelhados.

(neste ponto é possível relembrar a citação de Kittler acerca da relação de Balzac e Poe com a fotografia, que passava por uma renovação da curiosidade pelo sobrenatural: "Balzac, com suas tendências místicas, só conseguia imaginar o ser humano como um ser que consiste em muitas camadas ópticas - como uma cebola -, das quais cada fotografia retira e arquiva a camada superior, descascando-a, portanto, da pessoa fotografada") (mas é possível também relembrar Mesmer, bem como as relações possíveis entre Mesmer, Freud e Charcot)

O elemento que confere excepcionalidade ao conto de Leskov é o fato do espírito da senhora Genlis (uma personalidade histórica: escritora e educadora francesa que nasceu em 1746 e morreu em 1830) se manifestar por meio de seus livros - não de forma metafórica, mas material: o espírito estava nos "livrinhos azuis" que a princesa russa com quem o narrador de Leskov entra em contato mantém em sua estante. 

É a princesa quem explica, aliás: Estou convicta de que o delicado fluido de Félicité escolheu para si um lugarzinho aprazível sob o marroquim feliz, que abraça as folhas nas quais adormeceram os seus pensamentos, e, se o senhor não é totalmente descrente, então espero que consiga entender isso.

(Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 9)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Personagens de Shakespeare


"Apesar do peremptório veredito de charlatanismo, emitido nos relatórios oficiais pelos homens da Ciência acerca dos intermediários entre o mundo dos vivos e o dos mortos, o espiritismo teve adeptos e o apoio de órgãos de imprensa até ao primeiro decênio do século XX. Leskov viu-o sempre apenas como forma de misticismo. Ele devia decerto gostar duma passagem de William Shakespeare: em Henrique IV, duas personagens dialogam: '- Eu posso invocar os espíritos do abismo. - Eu também posso, qualquer pessoa pode, a única questão é se eles virão' " (Noé Polli, "Comentários aos contos", Nikolai Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 263-264).


"Todo en él podía tener un doble sentido, ser verdadero y falso a la vez. Era como un personaje de Shakespeare: un ambivalente, un desconfiable. Un traidor, a lo mejor, en el sentido en que un doble agente no puede no ser un traidor. Quizás ésa fuera la verdadera modernidad de su personaje" (Alan Pauls sobre Rodolfo Fogwill, Fogwill, una memoria coral (Patricio Zunini), Mansalva, 2014, p. 27).


domingo, 5 de janeiro de 2025

Sontag, certezas


O que parece incomodar Susan Sontag na escrita de seus ensaios é a necessidade da certeza – o escritor interessante, ela escreve em uma entrada de setembro de 1975 de seus Diários, “se encontra onde existe um adversário, um problema”; quando “tudo é afirmação” não se pode ser “uma escritora boa ou útil” (ela usa Gertrude Stein como um exemplo dessa escrita da afirmação). 

O diário é o laboratório de uma escritora cuja principal esfera de atuação é a dúvida, a ambivalência, a incerteza, o intervalo entre a escolha e a não-escolha de determinado tema ou caminho. “Tenho de desistir de escrever ensaios porque isso inevitavelmente acaba se tornando uma atividade demagógica”, escreve ela em maio de 1980, sempre nos Diários

“Pareço ser a portadora de certezas que eu não tenho – não estou nem perto de ter”. São inúmeros os momentos em que Sontag ataca a si própria com suas obrigatoriedades: “tenho de desistir”, “tenho de escrever”, e, ainda assim, quantas vezes ela escapa e faz justamente o oposto? Da manutenção desse dilema ao longo dos anos surge uma obra, quase por acidente, que está aí para ser lida e revisitada.