domingo, 2 de março de 2025

Mandrione



1) Muitas vezes eu penso no escritor que Juan Rodolfo Wilcock poderia ter sido e não foi: esse tipo de exercício mental não acarreta apenas uma lamentação do tipo "gostaria que ele tivesse abordado tais e tais temas", mas também um exercício de segundo grau que leva à reflexão sobre as razões que levaram Wilcock a escrever do jeito que escreveu, selecionando os temas que selecionou e assim por diante (um escritor imaginativo ao extremo, que muitas vezes chegava a tocar o surrealismo, o absurdo, o grotesco, o delirante, algo que, de resto, se relaciona diretamente com seu talento fora do comum para os idiomas: para exercitar essa capacidade, é natural que Wilcock se direcione para os excessos semânticos e sintáticos, e não tanto para o registro "documental" ou "etnográfico").

2) Nos anos 1970, Wilcock viveu em Roma, no número 54 da via Demetriade, de frente para as tumbas da via Latina, hoje no interior do parque arqueológico da Appia Antica. Wilcock caminhou exaustivamente pelas ruelas mais escondidas de Roma, experiência citadina que, nos romances (especialmente em I due allegri indiani), é transformada pela já referida perspectiva surrealista típica do autor (em textos para jornais, contudo, Wilcock é mais direto: chega a falar dos precários barracos de lata montados ao longo do Acquedotto Felice). Quando vejo as fotografias de Franco Pinna no vicolo del Mandrione vejo uma espécie de mundo paralelo, documental/etnográfico, àquele mundo de Wilcock (as fotografias de Pinna são de 1956, um ano antes de Wilcock se mudar definitivamente para a Itália; Pinna e Wilcock morreram no mesmo ano, 1978).

3) Na sua coluna na revista Vie Nuove, em maio de 1958, Pasolini escreve: "Lembro um dia, dirigindo pelo Mandrione com dois amigos de Bolonha, fiquei consternado com a visão de algumas crianças brincando na lama imunda. Estavam vestidos com trapos; corriam para lá e para cá, sem as regras de nenhum jogo: moviam-se, agitavam-se como cegos, naqueles poucos metros quadrados onde nasceram e onde sempre permaneceram, sem conhecer mais nada do mundo, exceto a casinha onde dormiam […] A vitalidade pura que está na base dessas almas significa uma mistura de puro mal e puro bem: violência e bondade, maldade e inocência, apesar de tudo".

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Corpo e sociedade


Em seu livro dedicado aos primeiros séculos da Era Comum (Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo), Peter Brown retoma e comenta uma série de textos e proposições dos primeiros bispos da Igreja Católica, entre eles Ambrósio de Milão, mestre de Santo Agostinho, que impressionou este último com sua capacidade de ler em silêncio. Na discussão sobre Ambrósio, chamou minha atenção o modo como Brown enfatiza sua preocupação com os limites e as fronteiras: a mentalidade de Ambrósio, argumenta Brown, é organizada a partir de contraposições muito nítidas que devem permanecer nítidas e demarcadas: santidade x pecado, virgindade x concupiscência, Igreja x Mundo, homem x mulher, e assim por diante. Vivendo em Milão, fronteira por excelência, em fins do século IV, para Ambrósio a discussão sobre os limites era uma forma de falar, simultaneamente, dos corpos dos fiéis, da relação entre Igreja e Estado e da posição dos funcionários eclesiásticos no interior da máquina imperial. Em Ambrósio está a semente da defesa dos dogmas, algo que ficará ainda mais dramático com as "invasões bárbaras" que já se anunciavam: justamente porque as fronteiras do mundo real estão sendo atacadas, é necessário vigiar e proteger as fronteiras internas com ainda mais rigor.

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Não sei até que ponto Borges estava ciente dessa articulação entre virgindade cristã (especialmente feminina, por conta da Virgem Maria, que Ambrósio singularizava como modelo para todos, homens e mulheres) e fronteiras do Império quando escreveu seu conto "Historia del guerrero y la cautiva" (publicado em 1945 no livro El Aleph). O fato é que, no conto, os dois temas estão cruzados: de um lado a mulher, a cativa (que são duas, a avó de Borges e a mulher "de Yorkshire" que se "transformou" em índia), e de outro o bárbaro invasor das fronteiras, Droctulft, que também "se transforma", já que morre defendendo Roma (como conta Paulo, o Diácono, por meio de Benedetto Croce, citado por Borges logo no início do conto). É digno de nota também que Borges faça o cruzamento das histórias também a partir da linguagem, do idioma: o bárbaro que se transforma em civilizado defendendo Ravena recebe, depois de morto, um epitáfio em latim que, provavelmente, não conseguiria entender; a avó de Borges, por sua vez, conversa em inglês com a mulher transformada em índia, que acessa o idioma com dificuldade por conta dos quinze anos que permaneceu sem uso (é a mulher quem indica a um soldado que deseja falar com a avó de Borges).


domingo, 23 de fevereiro de 2025

As cartas e o palco


Ainda nos comentários de Philip Roth sobre o Herzog de Saul Bellow, ele escreve: "Este livro de mil delícias não oferece nenhuma maior do que essas cartas, e nenhuma chave melhor para destrancar a notável inteligência de Herzog e penetrar nas profundezas do tormento que ele sente diante das ruínas de sua vida. As cartas são a demonstração de sua intensidade, fornecem o palco para seu teatro intelectual, o espetáculo de um só artista, no qual é menos provável que desempenhe o papel de bobo" (p. 394).

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1) A insistência tanto de Bellow quanto de Roth (o primeiro, na narrativa; o segundo, no comentário) no tema da carta me faz pensar em uma conferência de Agamben dada em 1984, "A coisa mesma", cujo texto é dedicado a Jacques Derrida e à memória de Giorgio Pasquali. Nesse ensaio, Agamben fala da Carta VII de Platão, "um texto cuja importância para a história da filosofia ocidental está ainda longe de ter sido devidamente avaliada".

2) Em torno dessa carta (e também de toda a epistolografia platônica) é colocada em questão toda a história da filosofia e, de certa forma, do próprio pensamento ou mesmo da possibilidade do pensamento: depois dos ataques de Meiners, Karsten e Ast, escreve Agamben, as cartas de Platão "foram pouco a pouco expulsas da historiografia filosófica". No século XX, contudo, a tendência começa a se inverter, continua Agamben, mas a desconexão prévia - a resistência contra as cartas de uma forma geral - se faz notar e torna o trabalho em torno a essas mesmas cartas mais difícil.

3) O que se perdeu, escreve Agamben, foi "a relação viva entre o texto a tradição filosófica posterior, de tal modo que, por exemplo, a Carta VII, com seu denso excursus filosófico, apresentava-se agora como um bloco montanhoso árduo e isolado, a cuja penetração se interpunham obstáculos quase insuperáveis". A carta, de resto, finaliza Agamben, tira parte de sua força justamente do fato de ser o registro de um fracasso no palco de um teatro intelectual: "Platão, já velho - com 75 anos -, evocou aos amigos de Dião seus encontros com Dionísio e a aventura fracassada de suas tentativas políticas sicilianas".


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

As cartas de Herzog





1) Em um ensaio sobre Saul Bellow ("Relendo Saul Bellow", Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura, 1960-2013, trad. Jorio Dauster, Cia das Letras, 2022, p. 380-401), Philip Roth comenta o romance Herzog, de 1964, apontando que quase não há ação ou drama para além daquela que ocorre no cérebro do protagonista - nesse sentido, poderia ser lido ao lado do Monsieur Teste, de Paul Valéry, que já rendeu muitas associações pela via do cérebro, da cabeça e do crânio (via Beckett, Descartes, Piglia e Agamben, por exemplo).

2) Roth aponta que o fluxo de consciência de Bellow em Herzog não está aparentado com aqueles de Faulkner ou Virginia Woolf (ou, ao menos, não exclusivamente): ele vê uma afinidade maior com o Diário de um louco, de Gógol: a principal estratégia narrativa compartilhada por Bellow e Gógol, escreve Roth, é a escrita de cartas (no caso de Gógol, é um cachorro quem teria escrito o maço de cartas que o narrador encontra, e o cachorro pertence à mulher pela qual está apaixonado - tudo tão Kafka e Felice (via Canetti), tudo tão Sloterdijk e Heidegger (via Regras para o parque humano)).

3) O diferencial do romance de Bellow, escreve Roth (p. 394), está na intensidade do uso das cartas e na liberdade ensandecida com a qual o narrador seleciona seus destinatários: a mãe morte, a amante viva, a primeira esposa, o presidente Eisenhower, o chefe da polícia de Chicago, Nietzsche, Heidegger ("Caro doktor professor, gostaria de saber o que o senhor quer dizer com a expressão 'a queda no cotidiano'") e, por fim - resgatando, de certa forma, o magistrado Daniel Paul Schreber de Freud, Lacan e Deleuze -, o próprio Deus ("tenho desejado cumprir sua vontade insondável").

sábado, 8 de fevereiro de 2025

O irracional


"A prova mais surpreendente da reação contra o Iluminismo [grego] encontra-se nos processos bem-sucedidos movidos contra intelectuais, a propósito de questões de natureza religiosa, ocorridos em Atenas no último terço do século V a.C. Em torno de 432 a.C., a descrença no elemento sobrenatural e o ensino da astronomia tornaram-se ofensas passíveis de punição.  

Os trinta e tantos anos que se seguiram testemunharam uma série de processos de heresia; algo único na história de Atenas. As vítimas incluíam a maior parte dos líderes do pensamento progressista: Anaxágoras, Diágoras, Sócrates, quase com certeza Protágoras e talvez Eurípides. Em todos os casos, com exceção do último, a ação judicial teve sucesso: Anaxágoras pode ter sido multado e banido; Diágoras escapou em tempo; Protágoras ao que parece também; Sócrates, que poderia ter feito o mesmo ou pedido uma sentença de expulsão da cidade, escolheu ficar e beber a cicuta. 

Todos eles eram pessoas famosas. Quantos cidadãos obscuros podem ter sofrido por suas opiniões é algo que não sabemos. Mas o que possuímos basta para provar que a grande idade do Iluminismo grego foi também, como nossos próprios tempos [Dodds escreve em 1949], uma idade de perseguição  -  com estudiosos sendo banidos, obscurecimento do pensamento e até mesmo (se acreditarmos na tradição a respeito de Protágoras) queima de livros"

E. R. Dodds. Os gregos e o irracional. Trad. Pedro Oneto, Escuta, 2002, p. 191. (é uma pena que um livro tão bom esteja acessível no Brasil em uma edição tão ruim: a tradução está cheia de erros, vários nomes gregos não foram traduzidos, vários títulos e termos estrangeiros estão sem itálico, várias vírgulas completamente equivocadas, vários plurais sem o "s", e o mais sério: várias vezes o período "d.C." é trocado por "a.C.", tornando a coisa toda muitíssimo confusa)

domingo, 2 de fevereiro de 2025

500 dólares para Saer


Em suas memórias (El enigma del oficio. Memorias de un agente literario), Guillermo Schavelzon fala do dia em que deu, como adiantamento para publicação de um original (Responso, seu primeiro romance), 500 dólares para Juan José Saer. Uma semana depois, Saer reaparece pedindo mais - diz que perdeu tudo no jogo. O detalhe é que, na primeira aparição, Saer disse que precisava do dinheiro naquele dia, impreterivelmente, pois no dia seguinte pegaria o navio que o levaria para Paris:

A la mañana siguiente, vuelve a asomar Saer por el agujero del suelo, y me dice que había perdido todo el dinero, y que como esa tarde salía su barco, necesitaba algo más.

No recuerdo qué le contesté, aunque desde mi ingenuidad seguramente pensé en un asalto, un robo, un accidente. Él fue sincero: lo había perdido jugando a las cartas. No entendía cómo alguien podía jugar con el dinero que necesitaba para viajar, no entendía lo que era un jugador y, claro, no había leído Responso, la novela sobre un jugador compulsivo. (p. 36).

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Um caso espírita, 2

Tábua de Giovanni Morelli

1) O momento em que a velha cega percorre o rosto de Gibbon com as mãos é o ápice do conto de Leskov: o momento de riso e humor (sem dúvida uma dimensão da "incontinência" meticulosamente pensada por Leskov: o riso corre solto como poderia fazê-lo a merda de um rosto que parece um ânus) e, também, o momento em que a crença no sobrenatural da princesa caia por terra: a senhora Genlis falhou, não ofereceu o oráculo que ela gostaria.

2) A cena toda é, também, uma lição de humildade - como aquela que Montaigne arma em seu ensaio sobre a experiência, também articulada em torno de um envio em direção à merda e ao cu, quando ele escreve que mesmo no trono mais alto, estamos sempre sentados sobre nosso cu (Et au plus eslevé throne du monde si ne sommes assis que sus nostre cul). E também uma reflexão sobre os prazeres baixos e a onipresença do escatológico em nossos processos psicológicos, como mostrará Freud poucas décadas depois da publicação do conto de Leskov: desde a Psicopatologia da vida cotidiana até a "dreckologia" (ou ainda, a "merdologia" de que fala  Freud em suas cartas para Fliess) que precede até mesmo a Interpretação dos sonhos, já que data de 1897.

3) A cena de Leskov, na qual um rosto se transforma em cu, pode ser vista também como uma sorte de antecipação artística (o próprio Freud não disse que foi nos poetas do passado que encontrou a doutrina psicanalítica?) da crítica aos procedimentos de controle e padronização dos corpos e rostos, sobretudo com fins policiais: não só a fisiognomonia de Lavater (e também de Goethe), mas também as impressões digitais de Francis Galton (ou mesmo a frenologia de Cesare Lombroso - e são absolutamente contemporâneos, já que Leskov nasceu em 1931 e Lombroso, em 1935), tudo isso evidentemente amarrado narrativamente por Carlo Ginzburg em seu ensaio de 1979 sobre o paradigma indiciário (que, de resto, se ocupa extensamente de Freud e de Giovanni Morelli).  


quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Um caso espírita, 1


Ainda no "caso espírita" de Leskov, o que de imediato chama a atenção é que se trata de uma narrativa sobre a leitura: a princesa recorre às obras da senhora Genlis sempre que precisa de alguma resposta ou direcionamento para a vida, ação que ela inclusive recomenda a outros, como, por exemplo, ao narrador (e nesse ponto específico, de buscar o futuro da vida na leitura de um fragmento textual escolhido ao acaso, Leskov encontra um eco latino-americano em Prisão perpétua, de Ricardo Piglia, que conta com uma personagem que consulta o I-Ching para saber se precisa consultar o I-Ching).  

O procedimento dá certo algumas vezes - realmente, quando um personagem vai aos livros e os abre ao acaso, surge uma frase que, com boa vontade, serve à situação. O ponto central do conto, no entanto, está no momento em que o procedimento não dá certo: a filha da princesa, inocente, sempre muito protegida e guardada dentro de casa, é chamada para provar a confiabilidade do procedimento. O trecho que lhe cabe, no entanto, não tem nada de inocente: trata-se de um trecho das memórias da senhora Genlis no qual ela descreve seu encontro com o historiador (1737-1794), notório por sua gordura: 

Gibbon é de pequena estatura, extraordinariamente gordo e tem um rosto admirabilíssimo. Neste, não era possível distinguir nenhum traço. Não se via nariz, não se viam olhos, nem boca; duas bochechas gordurentas, gordas, parecidas sabe lá o diabo com quê, absorviam tudo... Elas eram tão inchadas, que se haviam afastado de qualquer senso de proporcionalidade minimamente digna para as maiores bochechas do mundo; qualquer pessoa que as visse, deveria perguntar-se: por que não foi essa coisa colocada no seu lugar de direito? Eu caracterizaria o rosto de Gibbon com uma única palavra, se me apenas fosse possível dizer tal palavra. O duque de Lausanne, que era íntimo de Gibbon, levou-o, certa vez, à casa de Mme. Dudeffand. Ela estava já cega e tinha o costume de tatear com as mãos o rosto das pessoas notáveis que lhe eram apresentadas. Desse modo, adquiria uma ideia bastante fiel dos traços do novo conhecido. Pois ela aplicou o mesmo método tátil a Gibbon, e isso foi uma desgraça. O inglês aproximou-se da poltrona e com toda a bonacheirice ofereceu o seu admirável rosto ao toque da anfitriã. Mme. Dudeffand estendeu para ele as suas mãos e passou os dedos por aquele rosto esférico. Ela procurava esforçadamente alguma coisa em que parar, mas isso não foi possível. Então, o rosto da senhora cega primeiramente expressou espanto, depois fúria e, por fim, ela, retirando bruscamente as mãos com nojo, deu um berro: "Que brincadeira mais infame!" (p. 21-22)

sábado, 11 de janeiro de 2025

Um caso espírita



"O espírito da senhora Genlis", conto publicado por Nikolai Leskov em 1882, tem como epígrafe uma frase de Antoine Augustin Calmet: "Às vezes, é mais fácil invocar um espírito do que livrar-se dele", bastante adequado ao tom irônico da narrativa (que tem como subtítulo: "um caso espírita"). O narrador informa que a história se passa em um inverno da década de 1860, auge da febre das mesas girantes e fenômenos assemelhados.

(neste ponto é possível relembrar a citação de Kittler acerca da relação de Balzac e Poe com a fotografia, que passava por uma renovação da curiosidade pelo sobrenatural: "Balzac, com suas tendências místicas, só conseguia imaginar o ser humano como um ser que consiste em muitas camadas ópticas - como uma cebola -, das quais cada fotografia retira e arquiva a camada superior, descascando-a, portanto, da pessoa fotografada") (mas é possível também relembrar Mesmer, bem como as relações possíveis entre Mesmer, Freud e Charcot)

O elemento que confere excepcionalidade ao conto de Leskov é o fato do espírito da senhora Genlis (uma personalidade histórica: escritora e educadora francesa que nasceu em 1746 e morreu em 1830) se manifestar por meio de seus livros - não de forma metafórica, mas material: o espírito estava nos "livrinhos azuis" que a princesa russa com quem o narrador de Leskov entra em contato mantém em sua estante. 

É a princesa quem explica, aliás: Estou convicta de que o delicado fluido de Félicité escolheu para si um lugarzinho aprazível sob o marroquim feliz, que abraça as folhas nas quais adormeceram os seus pensamentos, e, se o senhor não é totalmente descrente, então espero que consiga entender isso.

(Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 9)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Personagens de Shakespeare


"Apesar do peremptório veredito de charlatanismo, emitido nos relatórios oficiais pelos homens da Ciência acerca dos intermediários entre o mundo dos vivos e o dos mortos, o espiritismo teve adeptos e o apoio de órgãos de imprensa até ao primeiro decênio do século XX. Leskov viu-o sempre apenas como forma de misticismo. Ele devia decerto gostar duma passagem de William Shakespeare: em Henrique IV, duas personagens dialogam: '- Eu posso invocar os espíritos do abismo. - Eu também posso, qualquer pessoa pode, a única questão é se eles virão' " (Noé Polli, "Comentários aos contos", Nikolai Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 263-264).


"Todo en él podía tener un doble sentido, ser verdadero y falso a la vez. Era como un personaje de Shakespeare: un ambivalente, un desconfiable. Un traidor, a lo mejor, en el sentido en que un doble agente no puede no ser un traidor. Quizás ésa fuera la verdadera modernidad de su personaje" (Alan Pauls sobre Rodolfo Fogwill, Fogwill, una memoria coral (Patricio Zunini), Mansalva, 2014, p. 27).


domingo, 5 de janeiro de 2025

Sontag, certezas


O que parece incomodar Susan Sontag na escrita de seus ensaios é a necessidade da certeza – o escritor interessante, ela escreve em uma entrada de setembro de 1975 de seus Diários, “se encontra onde existe um adversário, um problema”; quando “tudo é afirmação” não se pode ser “uma escritora boa ou útil” (ela usa Gertrude Stein como um exemplo dessa escrita da afirmação). 

O diário é o laboratório de uma escritora cuja principal esfera de atuação é a dúvida, a ambivalência, a incerteza, o intervalo entre a escolha e a não-escolha de determinado tema ou caminho. “Tenho de desistir de escrever ensaios porque isso inevitavelmente acaba se tornando uma atividade demagógica”, escreve ela em maio de 1980, sempre nos Diários

“Pareço ser a portadora de certezas que eu não tenho – não estou nem perto de ter”. São inúmeros os momentos em que Sontag ataca a si própria com suas obrigatoriedades: “tenho de desistir”, “tenho de escrever”, e, ainda assim, quantas vezes ela escapa e faz justamente o oposto? Da manutenção desse dilema ao longo dos anos surge uma obra, quase por acidente, que está aí para ser lida e revisitada.