domingo, 10 de agosto de 2025

María Dolz


1) A narradora de Os enamoramentos, romance de Javier Marías, é María Dolz, mulher na casa dos trinta anos que trabalha em uma editora de Madri e todos os dias toma seu café, pela manhã, no mesmo bar – é lá que sempre observa um homem que, mais adiante, será esfaqueado. A primeira camada da história que conta María Dolz é simples: sua observação daquilo que acontece ao redor. Novos personagens, porém, surgem, e com isso novas versões daquilo que se pensava já conhecido. Marías articula uma narrativa que, em alguns momentos, é carregada de suspense – uma tensão que explode no interior de uma linguagem densa e reflexiva. As cenas de potencial perigo ou violência normalmente surgem de improviso, como que rasgando abruptamente aquele véu descritivo e digressivo da narração de María Dolz.

2) Existem dois momentos em Os enamoramentos que extrapolam questões como narração, credibilidade ou uso dos gêneros – e são esses momentos que garantem a complexidade do livro. Marías, logo depois do primeiro quarto do livro, passa a construir sua narrativa lado a lado com uma novela de Balzac de 1832, O coronel Chabert, sobre um coronel de Napoleão que é dado por morto em batalha mas que retorna, vivo, anos depois. Mais de cem páginas depois, Marías costura em sua narrativa um momento de Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas (de 1844), que trata do mesmo tema de Balzac: uma pessoa dada por morta que retorna para assombrar os vivos.

3) Essas duas incorporações transformam o romance. Ecoam até o final, e temos a impressão de reler Dumas, Balzac e toda uma faceta da tradição literária a partir das palavras de Marías, como numa espécie de espectrografia (como faz Sebald, também pela via de Balzac, em Austerlitz), de necromancia textual. A sensibilidade de Marías está em sua violenta abordagem do passado, levando o leitor a uma profunda reconsideração do tempo e do espaço, a uma profunda reconsideração do real através do literário.

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