1) A complexidade da morte de Sócrates: apesar de ser uma espécie de "herói de guerra" (Sócrates serviu como hoplita na Guerra do Peloponeso), ainda assim condenado (entre outras coisas) por sua falta de comprometimento com a ortodoxia que regia (ou que devia reger, na opinião daqueles que o condenaram) a cidade; condenado por corromper a juventude, mas não necessariamente por encaminhá-los em certa direção, mas por ensinar que existem outras direções; condenado por não corroborar "acriticamente" a dimensão religiosa da vida na cidade (a religião como braço da política, como ingrediente da coesão social), por defender uma sorte de conexão privada com a divindade - que é a velha discussão, tão bem resumida e desenvolvida por Plutarco, da relação de Sócrates com seu daimon pessoal.
2) Talvez, seguindo a linha de pensamento de Friedrich Kittler, seja possível dizer que parte do empreendimento de Sócrates foi o de instaurar uma nova via de comunicação com o divino: o poeta especulativo como um medium de contato entre o alto e o baixo, entre o dizível e o indizível, entre aquilo que pertence ao éter, à nuvem, ao cosmos, e aquilo que pertence ao baixo, ao acessível, aos sentidos, ao cotidiano; Sócrates constrói uma sorte de infraestrutura para a inauguração desse novo hub comunicacional - com a decisiva contradição, contudo, de que ele não coloca a mão na massa, não escreve, não registra, não inscreve sua inovação tecnológica (deixa a tarefa para Platão).
3) Ou mesmo antes de Kittler, com Marshall McLuhan, na Galáxia de Gutenberg: "Antes de Sócrates, o saber fora o preceptor de como viver retamente e falar bem. Mas com Sócrates veio a cisão entre a língua e o coração. Era inexplicável que, de todas as pessoas, tivesse sido o eloquente Sócrates quem desse início à cisão entre pensar sabiamente e falar bem" (trad. Leônidas de Carvalho e Anísio Teixeira, Editora Nacional, 1977, p. 48).
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