segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
Josefina
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
O carvalho de Coriolano
1) Na vida de Coriolano, logo no início, na terceira seção, Plutarco conta como o então jovem guerreiro recebeu de seu comandante uma coroa feita das folhas do carvalho, concedida àqueles que salvam um companheiro de armas ao protegê-lo com o escudo. Como é típico de Plutarco (e, sem dúvida, um dos elementos que asseguram o valor do seu estilo ao longo dos séculos), ele inicia uma digressão aproveitando o tema do "carvalho": árvore que remete aos arcádios e à Arcádia, a mais fértil entre as árvores selvagens e a mais vigorosa entre as árvores cultivadas; "convém não esquecer", acrescenta Plutarco, que o carvalho oferece nutrição com suas "bolotas", além de ser fonte do hidromel, além de auxiliar na caça às "aves comestíveis" ao fornecer seu "visgo".
2) Como também acontece frequentemente em Plutarco, muitas das referências mobilizadas ao longo das digressões servem para uma valorização, ainda que enviesada, do mundo grego. É esse o caso na evocação das bolotas dos carvalhos: entre parênteses, Plutarco escreve que um "oráculo" certa feita chamou os arcádios de "comedores de bolotas". Uma das ocorrências dessa expressão está na Anthologia Palatina, que apresenta esse "Oráculo da Pítia", de autoria desconhecida: "Pedes a Arcádia? Muito pedes tu – não ta darei! / Na Arcádia há muitos homens comedores de bolotas / que se te interporão" (Heródoto (1.66), que transmite o oráculo, diz que ele foi dado pela Pítia aos Espartanos).
3) Nos versos 20-21 da décima Bucólica, Virgílio resgata um de seus pastores, Menalcas, e o apresenta "molhado pela colheita da bolota"; em nota, o tradutor João Pedro Mendes acrescenta: "A apanha do fruto do carvalho, para sustento dos porcos e bois na invernia, é executada na estação chuvosa e fria. O pastor chega molhado devido a essa tarefa de inverno. Também pode interpretar-se de outro modo. Catão, De Agric., 54, e Columela, VII, 9, 8, informam que os rústicos conservavam as bolotas em água para uso posterior" (p. 314-315, n. 18). No Canto XIII (versos 409-410) da Odisseia, Homero faz Ulisses reencontrar Eumeu e descreve as atividades dos porcos deste último: bebem água turva e comem muitas bolotas gostosas, próprias para a engorda.
terça-feira, 3 de dezembro de 2024
Verdade e justiça
"A escolha dos sintomas que são os intraduzíveis, assim, deriva da atenção às homonímias, percebidas em uma língua apenas do ponto de vista ou em função de outra língua. Por exemplo, em russo: pravda, que por costume, com ajuda do nome de um jornal, vertemos como vérité ['verdade'], significa, antes de tudo, justice ['justiça'] (é a tradução consagrada do grego dikaiosune], e é, portanto, um homônimo quando visto do francês. Por outro lado, nossa vérité é um homônimo do ponto de vista eslavo, pois o termo sobrepõe pravda, relativo à justiça, a istina, relativo ao ser e à exatidão.
O mesmo se aplica à ambiguidade 'para nós' da raiz svet, 'luz' / 'mundo', assim como à problemática homonímia de mir, 'paz', 'mundo' e 'comuna camponesa', com a qual Tolstói não para de jogar em Guerra e paz. Podemos desenrolar, sem dúvida, quase todo o dicionário puxando esse fio. Pois obviamente não se trata apenas de termos isolados, mas de redes: o que o alemão significa por Geist será às vezes mind e às vezes spirit, e a Phänomenologie des Geistes será às vezes of the Spirit, às vezes of the Mind, fazendo de Hegel um religioso espiritualista ou o ancestral da filosofia do espírito"
(Barbara Cassin, Elogio da tradução. Complicar o universal, trad. Daniel Falkemback e Simone Petry, WMF Martins Fontes, 2022, p. 81-82)
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
Um único epíteto
Na quarta seção de "O imortal", o conto que Borges publica pela primeira vez em fevereiro de 1947, na revista Anales de Buenos Aires, e que depois, em 1949, reaparecerá no seu livro O aleph, o autor escreve que ser imortal é insignificante: todas as criaturas o são, pois ignoram a morte (exceto o homem, que tem a morte como horizonte permanente). Dada a abstração da imortalidade, o narrador de Borges chega à conclusão de que, num prazo infinito, a todo homem acontecem todas as coisas; as virtudes anulam as infâmias, e vice-versa, seja do passado, seja do futuro. E nesse ponto, costurada à reflexão abstrata e metafísica, surge um comentário literário, uma brevíssima interpretação, um fugaz juízo de valor, muito ao estilo de Borges: esse jogo de equivalências tende ao equilíbrio, escreve Borges, e talvez o rústico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Églogas ou por uma sentença de Heráclito.
Essa aparição relâmpago de Virgílio é reveladora, especialmente em um conto que fala tanto de Homero, que depende tanto da fortuna póstuma e milenar das palavras e da figura mítica de Homero. Virgílio aparece em vários momentos da obra de Borges, mas nesse ponto específico de "O imortal" ele não é nominalmente mencionado, algo que certamente não contribui para a contagem estatística da presença de Virgílio na obra de Borges - mas a ênfase é decisiva: "um único epíteto das Églogas", é o que basta (é possível também insistir que Borges trabalha, em vários momentos, a partir de uma triangulação canônica que, para ele, é inquestionável: Homero, Virgílio, Dante).
segunda-feira, 25 de novembro de 2024
Der Ister
2) A corrente do rio, sua dimensão de movimento constante, evoca a instabilidade do Ser - o movimento do rio é tanto a "localidade do que é errático" quanto a "erraticidade do que é local". O Danúbio evoca um pertencimento específico, que não é aquele dos oceanos, ou mesmo aquele do Mediterrâneo; ao mesmo tempo, é seu curso que garante, para Heidegger, uma ligação entre a Alemanha e a Grécia, uma ligação que pode ser fundada no espaço, a partir de um conjunto de coordenadas geográficas específicas (um rio "que parece correr ao contrário"). A Antígona de Sófocles permite a Heidegger articular a leitura inicial de Hölderlin (tradutor do grego) com seu encaminhamento da reflexão em direção à política e ao uso do território (pois Antígona desafia a ordem do soberano com relação ao uso da terra, do espaço).
3) É outro, contudo, o Danúbio que encontra Claudio Magris algumas décadas depois (embora seja curioso o fato da publicação do curso de Heidegger sobre Hölderlin ser póstuma e ter sido realizada em 1984 - apenas dois anos antes do lançamento de Danúbio, a obra-prima de Magris): Magris relata sua passagem pela casa de Elias Canetti, por exemplo, mas essa casa nada tem a ver com o solo, tampouco está ancorada na paisagem imaginativa dos sujeitos - é apenas um ponto de passagem, uma posição contingente dentro de uma cartografia provisória.
sábado, 16 de novembro de 2024
Adestradores
Ainda em De genio Socratis, bem depois da passagem na qual se fala do daimon de Sócrates como um espirro, outro personagem relembra o que um oráculo teria dito ao pai de Sócrates quando este era ainda criança (20, 589, E): devia deixá-lo fazer o que quisesse, sem limitar ou guiar seus impulsos, garantindo sua plena liberdade, pois o menino já tinha dentro de si um guia melhor que qualquer mestre ou pedagogo.
Por fim, outro personagem, ampliando a questão (24, 594, B), levanta a hipótese de que os deuses marcam os melhores de nós, como um adestrador escolhe um cavalo dentro de um grupo de cavalos; os escolhidos recebem mensagens por símbolos, incompreensíveis para o restante do rebanho; assim como a maioria dos cães não entende o chamado do treinador, mas o cão escolhido sabe obedecer a um determinado assovio. "Tenho a impressão de que também Homero conhecia essa diferença", diz o personagem de Plutarco, citando o verso: "Heleno, querido filho de Príamo, entendeu dentro de si a decisão que agradava aos deuses em seus conselhos" (Ilíada, VII, 44-45).
sexta-feira, 15 de novembro de 2024
Sócrates e o espirro
Em sua narrativa De genio Socratis (tradução latina do grego Perí tou Sōkrátous daimoníou), Plutarco não apenas retoma a figura de Sócrates, mas o faz a partir do modelo oferecido pelo Fédon platônico: uma reflexão especulativa acerca do destino das almas após a morte. Na narrativa de Plutarco, Sócrates aparece eventualmente como tema de conversação de um grupo de conjurados que prepara uma insurreição contra os tiranos que tomaram o poder em Tebas (o que faz pensar em certas histórias de Jorge Luis Borges ou de Leonardo Sciascia).
Em certa passagem (11, 581, B), um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada (o mesmo personagem chega à conclusão, no andamento de sua fala, que a ideia toda é ridícula e não combina com aquilo que sabemos sobre Sócrates).
terça-feira, 12 de novembro de 2024
De que texto se trata?
2) O célebre manuscrito Laurentianus (uma cópia em minúsculas de um texto escrito em unciais, como precisam os autores) permite quando muito retornar ao codex do século V d. C., de que ele é uma cópia. Mais longe, é preciso postular um volumen da alta época imperial, que não é o texto de Sófocles, mas a interpretação de um filólogo da época de Adriano (Publius Aelius Hadrianus, imperador romano de 117 a 138).
3) O texto de Sófocles não precisa esperar o período romano para se tornar clássico ou escolar: já com Licurgo os três grandes trágicos já estão classificados como tais (Ésquilo, Eurípides, Sófocles, como registra Aristófanes nas Rãs, de 406). Licurgo já está quase um século distante da maioria das obras no período trágico - e foi ele quem instaurou a lei das "versões oficiais", ou seja, a lei que determinava que os textos das obras dos três grandes trágicos deveriam ser custodiados nos Arquivos da cidade, evitando, assim, modificações espúrias.
domingo, 10 de novembro de 2024
O final é o começo
domingo, 3 de novembro de 2024
1919, 1929
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Tia Carmela
1) Em uma das notas reunidas em seu livro Nero su nero, Leonardo Sciascia conta uma história siciliana da II Guerra Mundial: em uma pequena cidade na região de Agrigento chega a notícia da morte em batalha, na África, de um jovem morador do local. As autoridades decidem homenageá-lo de forma solene - era a primeira baixa registrada, tanto da cidade quanto da província -, com missa fúnebre, parada militar e discursos dos dignitários.
2) A mãe do falecido, contudo, continuava ouvindo a Rádio Londres - o que era rigorosamente proibido por lei na Itália da época -, que todos os dias anunciava os nomes dos soldados italianos feitos prisioneiros: teve a alegria de escutar não apenas o nome, mas também o sobrenome, local de nascimento, classe e matrícula. Não havia possibilidade de erro, era ele mesmo. Com a alegria, no entanto, veio a preocupação: a mãe não podia impedir o funeral sem confessar que havia escutado as transmissões radiofônicas do inimigo.
3) Sciascia escreve que a mulher experimentou o confronto do "medo supersticioso do funeral" (que poderia gerar "influxos de mau-agouro" em direção ao filho) com o "medo concreto de ser presa". Depois de passar a noite em claro pensando, acreditou ter encontrado a solução: foi ao chefe de polícia e disse a ele que tinha sonhado com seu filho, e que ele havia dito que o funeral não devia ser feito, ele estava vivo e bem em um campo inglês de prisioneiros. O chefe escutou com atenção e paciência e disse (escreve Sciascia): "Tia Carmela, esta noite tive o mesmo sonho, exatamente o mesmo... Mas o funeral precisa ser feito". "E foi feito", completa Sciascia.
sábado, 26 de outubro de 2024
Os danados
1) No prefácio do segundo volume de Mito e tragédia na Grécia Antiga (trad. Bertha Gurovitz, Brasiliense, 1991, p. 16-17), Vernant e Vidal-Naquet comentam, rapidamente, uma tradução ao francês do Édipo Rei de Sófocles. "Quando, no Édipo Rei de Sófocles", eles escrevem, "o servidor de Laio compreende que o homem que tem diante de si, soberano de Tebas, é a própria criança que, com os pés feridos, ele entregou ao pastor do rei de Corinto, ele lhe diz, de acordo com a tradução de Jean e Mayotte Bollack: 'Se és o homem que ele (o pastor de Corinto) diz que és, sabes que nasceste danado'" (são os versos 1180-1181).
2) O problema está na palavra "danado". O que faz essa palavra aqui, perguntam Vernant e Vidal-Naquet, com a "teodiceia cristão" que veicula e sua aproximação com uma "predestinação agostiniana ou calvinista" que nada tem a ver com a "angústia trágica". A tradução (aqui e em qualquer parte; mas aqui Vernant e Vidal-Naquet denunciam o anacronismo daninho) é já uma interpretação e um deslocamento - leva Sófocles em direção a Dante, aos danados do Inferno, ao pecado, à culpa e ao medo tal como construídos pela tradição cristã. "O texto grego diz", simplesmente, informam Vernant e Vidal-Naquet, "sabes que nasceste para um destino funesto".
3) Em nota de rodapé, os autores dão mais exemplos: no verso 823 - que eles traduzem como "Nasci para o mal?" -, o casal Bollack dá a tradução: "Sou um danado de nascença?"; "observemos finalmente", acrescentam eles, "o emprego do termo 'danação' para traduzir, no verso 828, o grego ômos daimôn, 'uma divindade selvagem'". Com relação aos versos 1180-1181, a tradução de Trajano Vieira para o português é a seguinte: Se és quem ele diz, crê: nasceste para a desventura. (Perspectiva, 2001, p. 97).
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
A língua de Françoise
terça-feira, 15 de outubro de 2024
O milagre de Petrônio
Milagre, porque o Satiricon, à primeira vista, parece ter sido escrito por ocasião de alguma viagem no tempo: diríamos que é um romance realista burguês que surgiu em plena Antiguidade escravagista. Biografia quase balzaquiana do parvenu Trimalcião, negociante enriquecido, psicologia nietzschiana do grupo dos libertos, com seu ressentimento, sua sobrecompensação do desprezo de classe, seu desdém ciumento pelos outros grupos sociais... Parece milagre mas não é, e o Satiricon não é um romance: é uma sátira menipéia (cf. Auerbach, Mimesis, Paris, Gallimard, 1969, p. 35 e N. Frye, Anatomie de la Critique, trad. Durand, Gallimard, 1969, p. 376). Petrônio não constrói personagens com uma consistência balzaquiana: ele capta no ar, no fio da vida cotidiana, uma película superficial, a das conversas, das opiniões ridículas e reveladoras, das entonações e expressões que revelam todo um mundo numa frase; é a arte de comédia de costumes ou de teatro de "revista"; esta arte se interessa pelos tipos sociais e recenseia as excentricidades, bem como os tipos "morais", o Avaro, o Distraído, o Soldado Fanfarrão. É uma arte mimética, uma arte do "rôle de composition" e não existe grande distância entre Petrônio e Plauto.
Esta arte de caricaturista decepcionaria, se a julgássemos pelo romance moderno: o Satiricon daria uma impressão de negligência, de repetição (a refeição na casa de Trimalcião é interminável), de não ter nexo; mas Ubu Rei também. O desdém evidente que Petrônio sente pelos libertos que coloca em cena não é um desprezo social que tinha por eles quando escrevia; certamente, devia considerá-los como indivíduos presunçosos e subalternos, mas, se o Satiricon é satírico, não é porque Petrônio pensa isso deles, mas porque escreve uma sátira. O romance burguês não é satírico: é sério, isto é, não é nem épico ou trágico, nem cômico ou satírico; mas, como diz Auerbach, a Antiguidade ignora o sério: para falar de temas "realistas", ela só conhece o tom satírico, e não o tom sério e neutro do romance burguês; ela só pode falar de temas "grosseiros" zombando deles.
O que atraiu o escritor Petrônio não foram os libertos na relação que mantinham com o grupo social ao qual pertenciam ele mesmo e seus leitores escolhidos: foi esta sua psicologia tão particular, um prato cheio para um caricaturista. O que permanece único é o talento de Petrônio para discernir e traduzir esta psicologia tão moderna e tão estranha às categorias mentais da Antiguidade; se Petrônio em nada anuncia Balzac e Zola, em pequena escala ele anuncia a visão psicológica da humanidade e do ressentimento que aparece em Nietzsche ou Dostoiévski.
(Paul Veyne, A elegia erótica romana: o amor, a poesia e o Ocidente, trad. Milton Meira, Brasiliense, 1985, p. 122, nota 49)
terça-feira, 8 de outubro de 2024
Almost no Greek
1) Em 20 de janeiro de 1965, Arnaldo Momigliano dá uma conferência sobre Vico no Instituto Warburg (publicada no ano seguinte em History and Theory). Resgata dois termos centrais para a Scienza Nuova: "bestioni" e "eroi", ou seja, de certa forma, "plebeus" e "patrícios" (Vico está discutindo as leis agrárias da Roma primitiva). Momigliano, no percurso da conferência, comenta uma série de idiossincrasias de Vico: afirma que ele tinha uma capacidade "quase infinita" para citações errôneas e desleixadas (algo compreensível para alguém que trabalhava rodeado por seus "oito filhos napolitanos", escreve Momigliano, além dos visitantes frequentes); afirma também que Vico não lia inglês ou francês, além de não ter mais do que os rudimentos do grego, o que limitava sensivelmente sua bibliografia ("He had almost no Greek, and his knowledge of Greek history was below the standards to be expected in a learned man of the XVIII century").
2) "Minha ignorância do grego é tão perfeita quanto a de Shakespeare", escreve Borges no verbete "Epidauro" de seu Atlas.
3) No ensaio de abertura de seu livro Grécia revisitada (São Paulo, Carambaia, 2022), Frederico Lourenço menciona um exemplar da Ilíada, em grego (um manuscrito da época bizantina), hoje conservado na Biblioteca Ambrosiana de Milão, que pertenceu a Petrarca: o poeta, contudo, "nunca leu o livro que considerava o mais precioso da sua biblioteca. E a razão é fácil de apontar: Petrarca não sabia grego. Embora se tenha esforçado já tardiamente para aprender a língua de Homero e Platão, nunca chegou a saber o suficiente para ler a Ilíada no original" (p. 23).
sexta-feira, 4 de outubro de 2024
La Castañeda
2) O romance de Rivera Garza é a transformação em narrativa do seu trabalho na tese de doutorado, dedicado ao hospital psiquiátrico "La Castañeda", na Cidade do México ("La Castañeda fue el centro psiquiátrico más grande de México hasta la segunda mitad del siglo XX", é o que diz o início do verbete da Wikipedia, completando: "La inauguración fue realizada por Porfirio Díaz en 1910 y su demolición se efectuó en 1968. Durante todo su período de funcionamiento el manicomio dio atención a más de 60 mil pacientes").
3) A potência do olhar em seu cruzamento com o desejo, as normas, as interdições e a dialética tensa entre repulsa e atração (que o próprio Foucault analisou na sua História da sexualidade) são elementos centrais tanto para o romance de Rivera Garza quanto para o estudo de Didi-Huberman. Não é por acaso que Rivera Garza coloca como protagonista do relato (ao lado da "mulher fatal", Matilda Burgos, a prostituta que se transforma em "louca", tendo sido, muito antes, no interior do México, uma menina que trabalhava nos campos de colheita da baunilha) um fotógrafo decadente que, em fim de carreira, se debruça sobre uma última tarefa: fotografar as internas do La Castañeda.
sábado, 28 de setembro de 2024
O horror de Marte
Virgílio entre Clio, musa da História, e Melpomene, musa da Tragédia (séc. III d.C.) |
1) Se é possível reconhecer em Guerra, de Céline, a trajetória de um soldado que se sente jogado para lá e para cá, em um encadeamento de cenas que diz respeito mais àquilo que veio depois da guerra, é possível reconhecer também um ponto de contato com Virgílio e com a Eneida, que, afinal de contas, é a história de um guerreiro que foge de sua cidade (Troia) destruída, encontrando pelo caminho os mais variados personagens (um paralelo com outro livro de Céline, De Castelo em Castelo, é possível).
2) Iniciada em 29 a. C. e publicada dez anos depois, logo após a morte de Virgílio, a Eneida é não apenas uma sorte de arquivo de mitos e personagens, mas é também uma obra que funciona dentro de uma constelação (assim como Joyce só pode pensar o Finnegans Wake depois do Ulysses): depois das Bucólicas, canções da flauta suave, e depois das Geórgicas, canções dos trabalhos da terra, Virgílio está pronto para a Eneida, que é um pouco de tudo, mas é, sobretudo, a canção da fundação de Roma pelas mãos um guerreiro em fuga que leva, para sempre, a guerra consigo.
3) Uma coisa interessante da Eneida é que ela começa com quatro versos que, a princípio, não fazem parte do poema em si - são versos introdutórios nos quais o próprio Virgílio, de certa forma, aparece: Ille ego qui, ou seja, "Eu sou aquele que..."; a partir dessa introdução, Virgílio fala de suas canções anteriores (precisamente as Bucólicas e as Geórgicas), afirmando que chegou a hora de falar da guerra: at nunc horrentia Martis, "mas agora o horror de Marte" (os quatro versos foram conservados pelos gramáticos Donato e Sérvio, do século IV, mas foram eliminados de alguns códices).
terça-feira, 24 de setembro de 2024
Guerra
1) Toda a história ao redor da publicação de Guerra, de Céline, é impressionante: décadas depois da escrita, décadas depois das guerras (tanto a Primeira, na qual Céline se feriu, quanto a Segunda, na qual atuou como colaborador/simpatizante nazista), décadas depois do roubo dos manuscritos, o livro ressurge, os manuscritos são decifrados e uma edição é feita, primeiro na França e, agora, no Brasil (tradução excelente de Rosa Freire d'Aguiar). Apesar da brevidade, Guerra mostra o mesmo Céline dos grandes livros - Morte a crédito, De castelo em castelo e assim por diante: a intensidade do estilo, a força escatológica e desencantada das imagens.
2) O ponto central do romance é a cabeça do seu protagonista, Ferdinand - o que não deixa de ser relevante e representativo da poética de Céline como um todo, muito dependente da fabulação maníaca dessa "cabeça", dessa mente, dessa imaginação tão singular. Existe um fato concreto que condiciona essa elaboração a partir da cabeça, da mente e da imaginação: Ferdinand é ferido na guerra (exatamente como o foi Céline, no dia 27 de outubro de 1914, em Poelkapelle, Bélgica), no braço e na cabeça, por conta de uma explosão. "Peguei a guerra na minha cabeça", ele escreve; "Ela está trancada na minha cabeça" (o que faz pensar nas Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber, e na gravura que faz Jan Peter Tripp - como conta Sebald - da cabeça de Schreber povoada por "monstros").
3) Já no final do romance, por exemplo, Ferdinand reitera os efeitos do ferimento sobre sua vida pós-guerra: "Era preciso fazer o enorme esforço de não ceder à angústia de não poder dormir, nunca mais, por causa dos zumbidos que nunca terminarão, nunca a não ser junto com a vida. Peço desculpas. Insisto mas é a minha melodia. Azar, não fiquemos tristes" (Cia das Letras, 2024, p. 123). A falta de sono, de certa forma, gera o estilo peculiar do narrador (como a asma em Proust, segundo Walter Benjamin); o "zumbido" é projetado em direção ao futuro - o narrador tem certeza que o acompanhará para sempre, já que a vida, a partir do ferimento, está indissociavelmente ligada ao trauma (só a morte pode fazer algo a respeito); por fim, a "melodia": eu "insisto", diz o narrador, mas essa ladainha é "minha melodia", ou seja, sua poética, seu estilo, seu "canto" (pela via de Homero (a guerra!), "Canta para mim, ó Musa"...).
quinta-feira, 19 de setembro de 2024
Adorável Stendhal
1) Frequentemente, em seus escritos sobre Stendhal, Leonardo Sciascia utiliza uma frase de Paul Valéry: "on n'en finirait plus avec Stendhal", ou seja, Stendhal é inesgotável e dele nos ocuparemos para sempre. Essa frase de Valéry é a penúltima de um ensaio publicado como prefácio à edição de Lucien Leuwen (romance inacabado escrito por Stendhal em 1834, publicado postumamente em 1894), contido em um dos volumes das Obras Completas de Stendhal publicadas em 1926 (o texto de Valéry foi republicado em 1937 na Nouvelle Revue française, revista fundada em 1908).
2) Em 2003, a editora Adelphi lança na Itália o livro L'adorabile Stendhal, que reúne vários textos de Sciascia sobre Stendhal, espalhados por diversos livros (trabalho de pesquisa e compilação de Maria Andronico Sciascia, viúva do escritor). Em um dos textos do volume, intitulado "Stendhal e a Sicília", Sciascia apresenta um movimento de leitura que, nas suas mãos, é sempre produtivo: rastreia os romances de escritores sicilianos realizados sob o signo de Stendhal.
3) O primeiro autor citado por Sciascia é Giovanni Verga: sua novela Camerati, de 1883, é uma "explícita homenagem a Stendhal": a batalha de Custoza (24 de junho de 1866, Terceira Guerra de Independência Italiana) é apresentada por Verga pelo ponto de vista de um soldado, muito nos moldes da batalha de Waterloo na Cartuxa de Parma. Sciascia fala ainda de Lampedusa, que mostra seu amor por Stendhal de forma explícita nas suas Lezioni su Stendhal e, de forma implícita, em seu grande romance Il gattopardo (de 1958).
sábado, 14 de setembro de 2024
Arqueologia do descontentamento
1) Existe um sentimento de descontentamento diante da própria época, diante da própria contemporaneidade, que funciona como um fio que une e articula uma série de obras e poéticas: é possível começar com Leonardo Sciascia que, apesar de ligado à política (portanto, aos debates e às burocracias de sua época), exaltava outros tempos, outros gestos, outros interesses e sentimentos (aqueles de Voltaire, por exemplo), sempre manifestando descontentamento com o embrutecimento que diagnosticava na sociedade ao seu redor (o caso Aldo Moro é paradigmático dessa situação).
2) A partir de Sciascia, é possível prosseguir em direção àquela que é sua principal referência, Stendhal, também ele marcado pelo cultivo de um desajuste com sua própria época (e, assim como Sciascia, um descompasso que é ambivalente: Stendhal exaltou seu contemporâneo Napoleão e todas as mudanças que o Imperador desencadeou), buscando nos arquivos italianos os traços luminosos de um passado que ele reconhecia como mais condizente com sua sensibilidade (Crônicas italianas); assim como Sciascia leu Stendhal com devoção, o mesmo fez Stendhal com Montaigne: é do inventor do ensaio que fez a potência do "eu", a capacidade virtualmente infinita de dar voltas ao redor dos próprios medos e ambições, capacidade essa que é o centro da invenção ficcional do próprio Stendhal (Souvenirs d'égotisme).
3) Montaigne também é um bom exemplo da tensão entre o pertencimento do artista à própria época e seu desejo de ser sozinho, de estar isolado - Montaigne que foi prefeito de Bordeaux entre 1580 e 1581 e que também mandou construir uma torre para melhor trabalhar em solidão. E, a partir de Montaigne, é possível pensar em Plutarco, uma de suas referências constantes: vive no Império Romano (nasce por volta de 46, morre por volta de 120), mas escreve em grego; foi sacerdote, magistrado e uma espécie de diplomata; sempre atento aos meandros políticos do presente imediato, mas permanentemente ligado às camadas metafísicas da experiência (falava em Alma e em Providência).
segunda-feira, 9 de setembro de 2024
Richepin
"No mais das vezes, Léon Marcia permanece silencioso e imóvel, mergulhado nas lembranças: uma delas, que emerge do mais profundo de sua prodigiosa memória, há vários dias o obceca: uma conferência que, pouco antes de morrer, Jean Richepin viera fazer no sanatório; o tema era a Legenda de Napoleão. Richepin contou que, quando era pequeno, costumava-se abrir uma vez por ano o túmulo de Napoleão, diante do qual desfilavam os inválidos para ver a face do imperador embalsamado, espetáculo mais propício ao terror que à admiração, pois o rosto estava inchado e verde; daí talvez a razão de a abertura do túmulo haver sido suprimida logo após. Mas Richepin teve a oportunidade excepcional de vê-lo, empoleirado no braço do tio-avô que servira na África e para quem o comandante dos Inválidos mandara abrir especialmente o túmulo" (Georges Perec, A vida: modo de usar, trad. Ivo Barroso, Cia das Letras, 1991, p. 188-189).
"Tome agora o tempo e o espaço. Suponhamos que uma criança lhe diga: 'Eu quero ser Napoleão na Batalha de Wagram', o senhor lhe diz: 'É impossível, ele está morto'. 'Que diferença isto faz?', insiste ela. Então o senhor diz: 'Ora, você sabe, isso foi há muito tempo. O corpo de Napoleão se decompôs. Você não poderá encontrá-lo'. Se a criança é esperta, dirá: 'Suponha que reunamos de novo todos os átomos de seu corpo e seu sistema mental; então poderíamos ver Napoleão em Wagram? Por que não?'. 'Sim, isso é possível de modo empírico'. A criança diz a seguir: 'Quero ver Wagram no passado: poderíamos em princípio fazê-lo reviver? Através de uma nova invenção associar de novo os átomos e moléculas dispersos?'. O senhor fala então: 'Você não pode viajar no passado'. 'Por que não?', pergunta ela. Um positivista diria que 'viajar' é uma péssima metáfora. Tudo o que entendemos por tempo é 'antes', 'depois', 'ao mesmo tempo'. Uma entidade tal que o 'tempo' no qual você poderia viajar não existe. O senhor utiliza incorretamente a linguagem. A criança pergunta agora: 'Se é um problema de linguagem, por que não mudá-la? Então eu poderia ver Napoleão em Wagram?'" (Isaiah Berlin: com toda liberdade - entrevistas com R. Jahanbegloo, trad. Fany Kon, Perspectiva, 1996, p. 171-172)
"O mito napoleônico tem realmente dado origem às mais espantosas histórias, sempre reputadas como baseadas em fatos irrefutáveis. Kafka, por exemplo, conta que a 11 de novembro de 1911 assistiu a uma conferência sobre o tema 'La légende de Napoléon', no Rudolphinum, em que um tal Richepin, cinquentão encorpado de bela figura, cabelo ondulado largo no estilo Daudet, bem colado à cabeça, dissera, entre outras coisas, que antigamente costumavam abrir o túmulo de Napoleão uma vez por ano para que os Invalides pudessem desfilar contemplando o imperador embalsamado. Mas depois o rosto foi ficando esverdeado e manchado e interromperam o costume da abertura anual do túmulo. Segundo Kafka, o próprio Richepin vira o imperador morto, quando criança, no colo de seu tio-avô que fora militar na África e para o qual o comandante mandara abrir propositadamente o túmulo. A entrada do diário de Kafka prossegue dizendo que, a concluir a conférence, o orador jurou que mesmo dali a mil anos cada partícula de pó do seu cadáver, se tivesse consciência, estaria pronta a responder à chamada de Napoleão" (W. G. Sebald, "Pequena excursão a Ajácio", Campo santo, trad. Telma Costa, Lisboa: Quetzal, 2014, p. 12).
quarta-feira, 4 de setembro de 2024
Kafka e os oradores
Um dos problemas principais enfrentados por Kafka em seus Diários (e também em sua obra narrativa de uma forma geral) é aquele da exposição do corpo individual diante do olho social e seu julgamento (seus ritos, suas interdições). Daí surge a ênfase de Kafka, no diário, na vida dos atores e seu interesse no relato das performances de profissionais bem sucedidos e, principalmente, de palestrantes (ele vai, com muita frequência, ver apresentações de trupes itinerantes - de teatro judaico, por exemplo -; vai também frequentemente assistir conferências em centros culturais - também alguns deles judaicos). Muitas das partes mais elaboradas do diário envolvem o registro do contato com oradores carismáticos – Rudolf Steiner, Karl Kraus, o militar francês Richepin, que viu o cadáver de Napoleão quando criança. Kafka mede a si mesmo e a seus personagens a partir do exemplo – vocal, corporal, aurático – desses indivíduos sedutores e estranhos (é já canônica a cena de Kafka lendo seus manuscritos para os amigos).
(o título desta entrada é uma referência ao excelente livro de Michael Baxandall, Giotto e os oradores)
quarta-feira, 28 de agosto de 2024
Sontag lê Leiris
quarta-feira, 21 de agosto de 2024
Escritura documental
"En un mundo en que nos queda claro que toda literatura es literatura comprometida - en el sentido de que sus estrategias y operaciones confirman o confrontan el mundo en que esta se produce - y que, lejos de ser una vocación solitaria, la escritura es un trabajo entre muchos con el bien común que es el lenguaje, resul- ta difícil aceptar sin chistar el carácter supuestamente no mediado del testimonio.
Mi énfasis en el documento - soporte material de un trabajo colectivo que con frecuencia involucra, al menos en el archivo institucional, la participación del Estado - cuestiona el carácter meramente oral y completo en sí, acabado en sí, de las declaraciones de los testigos presenciales de los hechos, y visibiliza, problematizando, la participación oscilante, desigual, acrónica, de los múltiples agentes que lo configuran. Y por eso a los libros que he escrito con base en noriginales, incluido y sobre todo El invencible verano de Liliana, los denomino escritura documental, y no literatura testimonial: artefactos que quieren cuestionar y producir (producir porque cuestionan) presente contra el cerco individualista de la imaginación neoliberal"
(Cristina Rivera Garza, "Los noriginales: desedimentar un feminicidio", Escrituras geológicas, Madri: Iberoamericana, 2022, p. 187)
segunda-feira, 19 de agosto de 2024
Ex Ponto
Joseph Brodsky, nascido em 1940, foi condenado pelas autoridades soviéticas, em 1964, a uma pena de trabalhos forçados - foi enviado para um campo próximo da cidade de Arcangel, distante pouco mais de mil quilômetros de São Petersburgo. Em 1965, já cumprindo a pena, ele escreve um poema intitulado "Ex Ponto (A última carta de Ovídio para Roma)", fazendo referências às cartas "pônticas" de Ovídio (Epistulae ex Ponto), escritas no exílio no "Ponto Euxino", território às margens do Mar Negro, extremo leste do domínio romano. O pedaço de um dos versos desse poema de Brodsky (que retiro e traduzo da versão em inglês que está aqui) diz:
aqui é o fim do mundo e, entre suas posses, não existe a liberdade
O mapa acima mostra uma reconstrução possível do percurso de Ovídio em direção ao exílio (retirado deste site): em 8 d. C. ele é condenado pelo imperador Augusto ao degredo em Tômis, na Trácia (hoje Constança, na Romênia); sai de Roma e pega uma embarcação em Brindisi, chegando na costa do que hoje é a Albânia e descendo o litoral da Grécia (os primeiros mil quilômetros são ultrapassados na altura da ilha de Zaquintos); depois da circunavegação da Grécia, passando por Monemvasia, no extremo sul, Ovídio chega a Corinto (onde completa, aproximadamente, dois mil quilômetros de percurso), de onde parte para uma das ilhas do mar Egeu, talvez Naxos; de Naxos, Ovídio parte para outra ilha, Imbros (hoje Turquia), e desta para uma terceira ilha, Samotrácia, de onde parte para desembarcar em Alexandrópolis - onde começa um longo trecho por terra até Bizâncio (hoje Istambul) (o trecho de Corinto até Bizâncio leva o percurso total para além dos três mil quilômetros). De Bizâncio, já no Mar Negro, Ovídio provavelmente navega pela costa até chegar em Tômis.
domingo, 4 de agosto de 2024
Deserto, fantasma
sexta-feira, 2 de agosto de 2024
Idem, ipsum
1) Um ponto decisivo de aproximação entre Agamben e Lerner está exposto pelo primeiro na segunda seção da segunda parte de A comunidade que vem (seção intitulada "O irreparável"): Agamben afirma que muitas confusões em filosofia nascem da confusão entre "a mesma coisa" (idem) e "a própria coisa" (ipsum). Para Agamben, o pensamento se ocupa da "própria coisa" e não da "identidade", da aproximação sem resíduos oferecida pelo idem. A "própria coisa", escreve Agamben, não é uma "outra coisa" que transcendeu a coisa, mas também não é simplesmente a "mesma coisa". A coisa, nessa situação, força um deslocamento em direção a ela própria, em direção ao seu ser tal qual é.
2) Com essa argumentação em mente (Agamben declara logo no início de "O irreparável" que a seção é toda um comentário do § 9 de Ser e Tempo, de Heidegger, e da proposição 6.44 do Tractatus de Wittgenstein), é possível retomar a epígrafe de 10:04 por uma nova ótica: "tudo igual, só um pouco diferente", para além da parábola de Benjamin/Scholem/Bloch, seria também um comentário à relação entre o idem e o ipsum, entre "a mesma coisa" e a "própria coisa". Trata-se, no romance, de multiplicar futuros possíveis que sejam não idênticos, mas deslocamentos da coisa em direção a ela própria, já que não se trata de uma investigação (romanesca, ficcional) sobre a "identidade" (idem), mas sobre as potencialidades infinitas da "coisa" (da própria literatura ou, ainda, do próprio da literatura).
3) A cada vez que o romance tenta ser ficção ou literatura, fracassa e inicia novamente, carregando consigo, na repetição, a tentativa frustrada do passado. A atualização da tentativa, portanto, em 10:04, é o modo da narrativa mostrar como tudo pode ser igual, apenas um pouco diferente: não se trata de definir uma essência, mas de jogar com possibilidades; não se trata de possessão, mas de limites; não se trata de pressupostos, mas de exposições.
segunda-feira, 29 de julho de 2024
Dostoiévski na Lua
Sobre os comentários de Wittgenstein sobre a viagem à Lua, uma nota relacionada, vinda de Bakhtin:
"Quanto à variedade de gênero das 'viagens fantásticas', aplicada em O sonho de um homem ridículo, é provável que Dostoiévski conhecesse a obra de Cyrano de Bergerac, O outro mundo ou História cômica dos Estados e Impérios da Lua (1647-1650). Aqui há uma descrição do paraíso terrestre na Lua, de onde o narrador foi expulso por desrespeito. Em sua viagem pela Lua ele é acompanhado pelo 'demônio de Sócrates', o que permite ao autor introduzir o elemento filosófico (no espírito do materialismo de Gassendi). Pela forma exterior, a obra de Bergerac é um autêntico romance filosófico fantástico.
É interessante a menipeia de Grimmelshausen Der fliegende Wandersmann nach dem Mond (aproximadamente 1659), cuja fonte geral foi um livro de Cyrano de Bergerac. Aqui aparece no primeiro plano o elemento utópico. Retrata-se a excepcional pureza e a justeza dos habitantes da Lua, os quais desconhecem os vícios, os crimes, a mentira, em seu país a primavera é eterna, eles vivem muito e comemoram a morte com um banquete alegre em círculos de amigos. As crianças que nascem com inclinações para o vícios são enviadas à Terra para evitar que corrompam a sociedade. Indica-se a data precisa da chegada do herói à Lua (como no sonho de Dostoiévski)"
Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski, trad. Paulo Bezerra, Forense Universitária, p. 170)
quarta-feira, 17 de julho de 2024
Selenografia onírica
quinta-feira, 11 de julho de 2024
Viagem à Lua
2) Sobre a certeza foi o último esforço filosófico de Wittgenstein. As anotações começam em 1949 e vão até 1951, ano de morte de Wittgenstein. Ele escreveu parte das notas entre abril de 1950 e fevereiro de 1951, quando morou em Oxford, na casa de sua aluna e futura editora Gertrude Anscombe (que será uma das responsáveis por Sobre a certeza depois da morte do filósofo). A última anotação de Wittgenstein é do dia 27 de abril de 1951 (ele havia feito aniversário no dia anterior, 26 de abril, 62 anos). Ele morre dois dias depois, na casa do seu médico, Edward Bevan (foi para a esposa deste, Joan, que Wittgenstein disse suas últimas palavras: Tell them I've had a wonderful life).
3) Wittgenstein, que gostava muito de ir ao cinema (e sentar na primeira fila, como informa o biógrafo Ray Monk), talvez tenha visto Viagem à Lua, de Méliès. Outro aspecto interessante na relação de Wittgenstein com uma (possível, impossível?) viagem à Lua é sua formação como engenheiro: ele chega à Victoria University of Manchester em 1908 com a intenção de estudar, entre outras coisas, aeronáutica. De certa forma, quando ele conta a fábula da criança em Sobre a certeza, não oferece um comentário exclusivamente da posição de filósofo, mas também - ainda que indiretamente - da posição de engenheiro (trata-se, para ele, também de uma impossibilidade mecânica: como voar até lá, que tipo de propulsão seria necessária, etc).
sexta-feira, 5 de julho de 2024
"Tentei ler"
"Roland Barthes era um homem por quem eu tinha amizade, mas que jamais consegui admirar. Parecia-me que ele assumia sempre a mesma postura professoral, muito controlada, rigorosamente partidária. Uma vez encerrado o ciclo 'Mitologias', não tive mais condições de lê-lo. Depois de sua morte tentei ler seu livro sobre a fotografia, até hoje não consegui, exceto um capítulo muito bonito sobre a mãe. Essa mãe venerada, que foi sua companheira e a única heroína do deserto de sua vida. Em seguida tentei ler Fragmentos de um discurso amoroso, mas não consegui. É muito inteligente, é claro. Apontamentos amorosos, é, é isso, amorosos, eximindo-se daquele jeito, sem amar, mas coisa alguma, parece-me, nada, um encanto de homem, um encanto mesmo, de todo modo. E escritor, de todo modo. Aí está. Escritor de uma determinada escritura, imóvel, regular"
(Marguerite Duras, A vida material, trad. Heloísa Jahn, Globo, 1989, p. 38)
segunda-feira, 24 de junho de 2024
Angelus McFly
1) No final do seu romance 10:04, Ben Lerner retorna ao começo e explica o texto que estava na abertura, na epígrafe - uma espécie de performance hermenêutica que reitera o ponto principal do livro: a ideia de que o sentido nunca se oferece completamente e, nas ocasiões em que se oferece (mesmo que de forma provisória e incompleta), o faz sempre retrospectivamente ("entender" é um jogo com o tempo: estar no futuro que se transformou em presente e, dessa posição impossível, resgatar do passado todos os "futuros possíveis", todas as projeções e tentativas que foram planejadas/esboçadas, promovendo uma comparação com esse futuro que se transformou em presente). Ao reconstruir rapidamente a genealogia da epígrafe (história encontrada em um livro de Agamben, geralmente atribuída a Walter Benjamin), Lerner força o leitor a uma releitura da epígrafe e, por que não, do romance todo.
2) Lerner, evidentemente, não dá a informação completa - ele se limita a colocar em circulação essas duas referências, Agamben e Benjamin, omitindo outros dois nomes mencionados por Agamben em A comunidade que vem: Benjamin ouviu uma "parábola sobre o reino messiânico" de Gershom Scholem, contou para Ernst Bloch e este incorporou a história ao seu livro Spuren ("vestígios", "traços", "pistas"), de 1930. Mais uma vez a cronologia é embaralhada e a própria manifestação de um exemplo (uma história sobre a criação discursiva de um mundo possível) carrega em si uma sorte de versão resumida do argumento: o passado é aquilo que acontece quando narramos, na posição impossível do presente, os vários futuros outrora imaginados.
3) "Tudo será como agora, só que um pouco diferente": Lerner usa a frase final da história que está na epígrafe ao longo de todo o romance, voltando à fonte (Walter Benjamin - embora não seja exatamente uma "volta", já que sabemos apenas no final ("Agradecimentos") que Benjamin está na epígrafe, mesmo que não-nomeado) no momento em que cita o Angelus Novus de Klee das teses sobre o conceito de história - imagem que é aproximada, por Lerner, em seu romance, do personagem Marty McFly do filme De volta para o futuro (o anjo impelido para a frente, pelos ventos do progresso, de Benjamin, se transforma, no romance de Lerner, em uma figura do cinema, em algo que diz respeito diretamente à trajetória do narrador, a um filme da infância, etc).
sexta-feira, 14 de junho de 2024
Do limbo
2) Já no começo de seu livro A comunidade que vem, de 1990, na segunda seção, intitulada "Do limbo", Agamben fala das crianças a partir de Tomás de Aquino (e comento a partir das crianças por conta do trecho da epígrafe de Lerner que fala sobre o sono do filho, algo que será importante ao longo do romance): Agamben comenta que o Doctor Angelicus do século XIII postulou que a pena das crianças não batizadas no limbo não poderia ser a mesma pena daqueles que sofrem no inferno - não será uma pena aflitiva, e sim uma pena privativa, ou seja, uma privação da visão de Deus (uma carenza, escreve Agamben, uma "carência", "falta" ou "vazio" que se expande infinitamente ao longo da eternidade).
3) Essas crianças sem batismo estão suspensas, congeladas em uma ambivalência (um momento específico como 10:04?): come lettere rimaste senza destinatario, escreve Agamben ("cartas sem destinatário"), questi risorti sono rimasti senza destino (eles estão "sem destino"). Né beati come gli eletti, né disperati come i dannati, essi sono carichi di una letizia per sempre inesitabile: nem eleitos, nem condenados, estão carregados de uma alegria que não acaba, que não se esgota (em termos mais literais, que não pode ser vendida). Um comentário sobre a palavra risorti, usada por Agamben para se referir às crianças no limbo: tem relação não apenas com os "ressuscitados", mas guarda também um contato etimológico com a ideia daqueles que dependem de certa jurisdição, ou que procuram refúgio ou asilo (ressort, ressortum, resortire).