1) O conto de Kafka sobre "Josefina", a cantora do povo dos camundongos, é, entre muitas coisas, uma meditação sobre as relações entre fala e escrita: não há qualquer menção no conto à dimensão escrita da literatura/narrativa, apenas sua dimensão oral - é pelo som, única e exclusivamente, que Josefina se comunica e é apenas pelo som que seu povo interpreta sua atuação, sua performance, que é, simultaneamente, estranha e familiar, atraente e repulsiva. Tanto é esse o caso que, no final do conto, a performance oral de Josefina é ligada à possibilidade do esquecimento (e é precisamente pelo viés da memória que a escrita é condenada por Platão, como relembra Jacques Derrida quando escreve sobre o pharmakon).
2) No caso específico de Kafka e da tradição judaica que ele movimenta e resgata no conto sobre "Josefina", o recurso à oralidade por parte da cantora e de seu povo tem relação, também, com a sobrevivência: o povo dos camundongos é um povo que vive nos subterrâneos, que só pensa em trabalho porque é precisamente esse foco que garante sua sobrevivência. A oralidade, nesse caso, é algo que pode ser mantido dentro de um círculo de confiança: a narrativa circula entre ouvidos preparados, em uma escuta coletiva que é preparada de geração para geração, para evitar o contágio externo (e, nesse ponto específico do contágio, existem contatos importantes entre a tradição judaica e a grega: a tragédia grega do século V a.C. é carregada de uma permanente angústia do contágio).
3) Da conjunção da tradição oral com o esquecimento surge um terceiro tema, também fundamental para Kafka: o silêncio (é possível pensar na fábula póstuma "O silêncio das sereias"), que pode ser interpretado não apenas como o fim necessário de toda narrativa/literatura, mas também como o fim inescapável de todo pensamento (como um contemporâneo de Kafka, Wittgenstein, aponta em seu Tractatus, de 1921: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar"). "Chegará logo o tempo em que seu último assobio vai soar e emudecer", escreve Kafka sobre Josefina no penúltimo parágrafo do conto. Roberto Calasso: "Para Kafka, o 'povo dos ratos' seria sempre a imagem última da comunidade" (K., trad. Samuel Titan Jr., Cia das Letras, 2006, p. 261)
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