quinta-feira, 25 de março de 2021

Conceito e doença


1) O "mal de arquivo", forma com a qual Derrida retoma um longo debate (a história da filosofia como história da troca de cartas, mensagens: Platão, Sócrates e o cartão-postal; Sloterdijk lendo Heidegger) sobre a relação entre pensamento e corpo, conceito e doença: no livro sobre Michelet que publica em 1954, Barthes fala desse "comer a História", ou seja, dessa imersão de Michelet nos arquivos, cheirando os mortos, comendo seus resíduos, absorvendo materialmente esses restos (doença adquirida pelo risco do trabalho nos arquivos, algo ligado à frase de Stephen Dedalus no romance de Joyce: History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake).

2) Nessa perspectiva, o mal de arquivo é uma doença da possessão, da mescla entre o ser e algo que está para além dele (Carlo Ginzburg, nos vários momentos em que reflete sobre seu encontro com os arquivos - especificamente a figura do moleiro Menocchio -, fala dessa transformação do pesquisador diante do acaso). A reflexão de Derrida nos anos 1990 sobre Freud e o arquivo retoma aspectos da reflexão de quase trinta anos antes sobre Platão e o pharmakon, o veneno-remédio: o principal objeto de Derrida nesse texto é o diálogo Fedro, no qual Sócrates faz uma defesa da possessão como marca de definição do comprometimento do pensador com aquilo que o faz amar o pensamento (é desse "mal" do pensar de que fala Roberto Calasso em A literatura e os deuses; é sobre essa capacidade da possessão de atravessar tempos e espaços de que fala boa parte da obra de Aby Warburg).

3) Quando fala de Michelet em Meta-História, Hayden White ressalta a configuração metafórica que ele propõe da Bastilha, "emblema da velha monarquia", "símbolo da condição irônica em que um 'governo da graça' mostrava sua 'boa índole' concedendo lettres de cachet a favoritos por mero capricho e aos inimigos da justiça por dinheiro". Segundo Michelet, escreve White, o pior crime do velho regime era "condenar homens a uma existência que não era nem vida nem morte", mas um meio-termo entre vida e morte, uma "vida inanimada, enterrada": a Bastilha é um mundo organizado para o esquecimento, para o inorgânico. "A Revolução foi a ressurreição política e moral de tudo de bom e humano 'enterrado' pelo velho regime" (Meta-História, trad. José Laurênio de Melo, Edusp, 2008, p. 166-167).  

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