segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Ignorância perfeita

1) "Minha ignorância do grego é tão perfeita quanto a de Shakespeare", escreve Borges no verbete "Epidauro" de seu Atlas. Para Borges, Shakespeare é uma espécie de manancial inesgotável, um arquivo sem fundo, uma máquina eterna que dissemina virtudes - mesmo a ignorância, parente da sombra, se tem sua origem em Shakespeare é imediatamente transformada em luz e perfeição.
2) No conto "A memória de Shakespeare", basta uma frase para indicar a perfeição que é ser Shakespeare - com uma única frase, escutada em uma conversa telefônica, o arquivo-shakespeare se abre em toda sua impossibilidade mágica, seu hermetismo sobre-humano. Shakespeare só pode ter criado o humano, como quer Harold Bloom, porque, como quer Borges, ele é mais que humano (porque agora é pura linguagem, pura metafísica).
3) Há uma ambivalência curiosa de Borges com relação à memória: se a memória de Funes é abarrotada, totalitária, infatigável e, finalmente, abertamente trágica em sua dimensão tediosa, a memória de Shakespeare é aberta, fluida e luminosa. O narrador do conto tenta obliterar a memória de Shakespeare em sua mente e fracassa: esse e outros caminhos foram inúteis: todos me levavam a Shakespeare, escreve Borges. Funes precisa do mundo para conhecer os limites de sua memória; o mundo precisa de Shakespeare para memorizar os limites do conhecimento.   

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