domingo, 5 de abril de 2020

Retábulo

A poesia de Charles Simic é cheia de museus e bibliotecas, estátuas, monumentos, retábulos, afrescos e pinturas de grande proporção. Ele faz referência aos artefatos e aos espaços que abrigam os artefatos. Em um poema como Reading History (do livro A Wedding in Hell), por exemplo, ele escreve:

At times, reading here
In the library,
I'm given a glimpse
Of those condemned to death
Centuries ago

O olhar de Simic está sempre cindido entre esse momento imediato de distração, o "aqui" e "agora" - reading here -, e o passado arcaico, afastado - centuries ago. Esse mundo dividido diz respeito à sensação de que temos cada vez mais conhecimento sobre o concreto e cada vez menos sobre o abstrato (que é pouco "prático", que "não serve para nada"). Simic é um poeta na linha de Dante: sua intenção é obter uma sorte de pedra filosofal que ofereça o conhecimento das coisas do mundo e, ao mesmo tempo, sabe que tem acesso a muito mais "informação" do que Dante, embora esteja certo/seguro/confiante em um número bem mais reduzido de coisas. 

Nessa perspectiva, fica claro que Simic não pode construir um grande retábulo ou alegoria que reconstrua um mundo em sua extensão e essência: ele foca sua energia em elaborar pequenas cenas das quais não é possível demarcar um sentido claro:

Descartes smelled
Witches burning
While he sat thinking
Of a truth so obvious
We keep failing to see it

(do poema Nearest nameless)

*

É possível reconhecer em parte essa angústia diante da "grande alegoria" também no destino de Erich Auerbach, especialmente no que diz respeito ao contexto de elaboração de seu livro Mimesis (que ele escreve a partir de 1942 no exílio na Turquia, onde chegou em 1936, fugindo do nazismo). Apesar da impossibilidade de alcançar o "grande retábulo" da literatura ocidental, ainda assim Auerbach o faz - e essa ambivalência percorre todo o livro (Simic, que começa a escrever quase 40 anos depois, só pode fazer referência a essa impossibilidade, sem poder acessá-la). Auerbach é o primeiro a se incomodar - como afirma no "Epílogo" - com a pretensão de uma grande suma, afirmando que isso só foi aceitável por conta da situação extrema do exílio. 

(de certa forma, é como se Auerbach ainda vivesse sob um registro de mundo no qual o fim não só estava próximo como era bastante provável - diante disso, é possível forçar os próprios critérios e ceder diante da impossibilidade da grande suma - justamente o que ele faz, narcisisticamente a contragosto, com Mimesis. Simic, por sua vez, já vive imerso no tempo amorfo da destruição mútua assegurada da guerra fria, o fim está continuamente dado em um eterno presente - ao contrário do impulso conferido à geração de Auerbach, o fim para a geração de Simic gera uma espécie de letargia irônica. Diante disso, ceder diante da impossibilidade da grande suma se apresenta como um misto de ingenuidade, otimismo e desatenção, três características que parecem profundamente estranhas à poética de Simic)

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