Panorama em construção, Paris, século XIX |
1) Naquele artigo de Proust sobre Flaubert, comentado recentemente por aqui por conta da entrevista de Jean Echenoz, existe outro ponto interessante além da discussão sobre o uso de um advérbio em Herodíade. "Na minha opinião", escreve Proust, "a coisa mais bela da Educação sentimental não é uma frase, mas um espaço em branco". A forma como Flaubert, em última instância, lida com o tempo dentro da narrativa, é disso que fala Proust. A forma como Flaubert corta e monta os fatos, as imagens, as sensações e, através disso, faz ficção. Carlo Ginzburg também comenta esse procedimento de Flaubert em um ensaio reunido em Relações de força - intitulado justamente "Decifrar um espaço em branco".
2) Assim como acontece no El factor Borges de Alan Pauls - no qual um crítico hoje completamente esquecido, Ramón Doll, é resgatado em sua miopia e seu juízo de época revalorado -, também no ensaio de Ginzburg se apresenta uma discussão de uma resenha da Educação sentimental no "calor da hora". Em Pauls, Ramón Doll é aquele que denuncia Borges como um escritor de "segunda mão", a quem falta "criatividade". Em Ginzburg, quem retorna do arquivo é Édmond Scherer, que denunciou o romance de Flaubert como "excessivamente fragmentário" (o mesmo crítico, informa Ginzburg, escrevera sobre Baudelaire alguns meses antes, com igual incompreensão). Pois Scherer tocou em algo fundamental em Flaubert: a descontinuidade, a montagem, as elipses, a eloquência do silêncio, "os espaços em branco".
3) Talvez isso tenha relação com aquilo que foi dito acerca do "crânio de Flaubert" e seu desejo de tudo abarcar, de "saber de cor", de ver todo seu romance com um só olhar. Pois somente tal controle sobre a totalidade permite a decomposição radical que surge em sua ficção. A "fragmentação excessiva" de Flaubert só pode emergir da maníaca convivência e resolução do e com o todo. E Ginzburg frisa como isso se dá no estilo de Flaubert, em suas soluções formais - a dissolução de uma cena de sonho em uma abrupta chamada da realidade, a sobreposição entre o interior de uma peça e o exterior do boulevard, etc. Ginzburg cita as Passagens de Walter Benjamin, a parte sobre os panoramas, mostrando que o trabalho de montagem de Flaubert na ficção envolve também uma glosa daquilo que a técnica mostrava em seu tempo - a aceleração do tempo nos dioramas e nas fotografias.
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