1) Na terceira de suas Meditações, Descartes apresenta provas da existência de Deus baseadas no princípio da causalidade, como a que afirma que só existindo realmente Deus - que seria a causa - é possível explicar a existência de um ser finito e imperfeito (o eu pensante para Descartes), porém dotado da ideia de infinito e de perfeição - e aqui surge o efeito da causa. Essa ideia estaria na mente do homem como "a marca do artista impressa em sua obra", escreve Descartes. Só a existência efetiva de Deus pode explicar a simples emergência da ideia de Deus na mente humana, defende Descartes.
2) No mesmo Diário de um ano ruim em que fala do larvatus prodeo de Descartes, Coetzee argumenta todo o contrário dessa ideia de Descartes sobre a existência de Deus. Trata-se do capítulo 17 das "Opiniões fortes", intitulado "Do Design Inteligente" - uma doutrina que postula a existência de uma inteligência maior por trás do universo e seus processos. "Não desejo me associar a isso", escreve Coetzee, "mas continuo a achar a evolução por mutação ao acaso e seleção natural não só pouco convincente como ridícula enquanto descrição de como surgem os organismos complexos". "Não me parece filosoficamente retrógrado atribuir inteligência ao universo como um todo", continua Coetzee, "em vez de apenas a um subconjunto de mamíferos do planeta Terra". O universo inteligente evolui com um propósito - mesmo que o intelecto humano não reconheça esse propósito (ou sequer a ideia bruta do que seria um propósito).
3) Segundo Coetzee, o intelecto humano é marcado por uma estranha combinação: "a combinação de insuficiência de percepção intelectual junto com a consciência de que essa percepção é insuficiente". Experimentamos assombro, "contração da mente, como diante de um abismo", sempre que tentamos compreender a origem do espaço e do tempo e "a natureza do entendimento em si". Se o intelecto teve sua evolução a partir de uma mutação progressiva, não seria lógico imaginar que com um pouco de esforço se poderia esboçar uma arqueologia desse mesmo intelecto? Mas não, o que se tem, segundo Coetzee, é o abismo. "Um aparato intelectual marcado por uma consciência de sua insuficiência é uma aberração evolucionária", finaliza ele. Tal consciência, que para Descartes é a assinatura do artista, Coetzee vê como aberração.
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