1) Em um ensaio de 1958 ("Natureza e história do romance"), Italo Calvino usa um método de escrita que muitos anos depois vai atingir seu ápice em Seis propostas para o próximo milênio. Consiste simplesmente em apresentar longas citações de romances canônicos e, no confronto dos estilos, articular um comentário. Para Calvino, o romance chega a um impasse com Flaubert: "depois de ter acumulado pormenores minuciosos e construído um quadro de perfeita verdade, Flaubert bate os nós dos dedos sobre esse quadro, mostrando que por baixo há o vazio, que tudo o que acontece não significa nada" (Assunto encerrado, discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni, Cia das Letras, 2009, p. 35).
2) Um desvio de sentido separa o que se podia entender em 1958 das palavras de Calvino daquilo que se pode inferir hoje. Para o Calvino de 1958, o trecho acima leva a uma concepção do realismo como falta - por trás da ficção está o "fluir impalpável da vida", argumenta Calvino em seguida, um fluir "que é a um só tempo natureza e história". Mas a imagem do fundo falso do quadro de Flaubert pode ir além, tornando-se uma espécie de elo suplementar da vasta discussão sobre a linguagem ficcional e a circulação da moeda falsa - que poderia começar com Baudelaire, continuar por André Gide, Marcel Duchamp, César Aira e Jacques Derrida. Ou ainda: desnaturalizar a recepção e a circulação da ficção, ressaltando sua artificialidade, sua porosidade e seu caráter provisório (como queria Barthes a partir do prazer do texto).
3) A própria citação de Calvino já é incorporada ao novo paradigma de circulação crítica (uma teoria da citação que ganha sua operatividade com Benjamin e sua classificação com Compagnon, como mostra Dolf Oehler no último ensaio de Terrenos vulcânicos), pois abandona a linearidade de sua exposição original e, a partir daí, passa a fazer parte de um arranjo contingente de vozes heterogêneas - um horizonte que até certo ponto estava incluído no projeto expositivo original de Calvino, com seu jogo de citações de romances e breves comentários. O desnível que em 1958 ainda operava entre citação e comentário (e entre realização estética, o quadro perfeito, e logro interpretativo, o fundo falso), no entanto, já não se sustenta mais - vale mais a dinâmica da transmissão (Baudelaire em Valéry, em Benjamin e em Derrida) do que o sistema de atribuições ("Flaubert, o enganador").
Nenhum comentário:
Postar um comentário