quarta-feira, 20 de março de 2013

Byron na Itália

1) David Lurie, o protagonista do Disgrace de Coetzee, alimenta há anos esperanças de finalizar sua ópera, Byron na Itália. Ele continua pensando, escrevendo, esboçando, mesmo depois da demissão, do exílio, de sua desfiguração e da violação de sua filha. Perdido no deserto africano, ele persiste em seu desejo de alcançar Byron, sua amante Teresa, e a Itália. Ele sabe que jamais verá seu projeto pronto, que jamais verá sua ópera encenada, e mesmo assim ele continua. De onde vem esse desejo alheio a toda finalidade, produtividade ou utilidade? Esse gasto inoperante de Lurie, que faz pensar em Georges Bataille (La notion de dépense, 1933), é a última resistência do pensamento em um cenário brutalizado que o ignora.  
2) No começo do projeto de Lurie, Byron ainda está vivo - a ópera gira em torno das súplicas que lhe faz sua amante, a italiana Teresa. Trabalhando no exílio, Lurie faz de Byron um fantasma e de Teresa uma viúva nostálgica, que se lamenta enquanto lê as cartas antigas de seu ex-amante. Como em Foe, Coetzee desloca a origem da voz narrativa em direção ao feminino, transformando o masculino em eco fantasmático. Para Lurie, esse lamento nostálgico não combina com a plenitude do som do piano: ele encontra um pequeno banjo em sua casa destruída, e é dele que retira as notas do canto de Teresa.  
3) Com piano ou banjo, não há sequer uma mínima fagulha de interesse por Lurie e seu projeto no ambiente em que vive. Lurie prega para as pedras. Ele trabalha, como sabemos, em uma clínica veterinária - se ocupa no manejo dos animais mortos, na administração dos dejetos. É na clínica que encontra sua audiência: um cão sem uma perna, ridículo e enternecedor em sua movimentação errática, que pára, espicha o pescoço, põe a cabeça de lado e estica as orelhas sempre que Lurie começa a tocar o banjo. Lurie é absorvido por esse contato, por esse sinal de reconhecimento, por esse espaço de troca que é inaugurado a partir do olhar do cão. Por que não incluir na ópera seu corpo, seu olhar, seu uivo?, pergunta-se Lurie. Talvez seja possível salvar o cão do mundo da técnica e da utilidade, salvá-lo da morte, através do movimento de incorporá-lo, o cão, seu corpo e sua linguagem, ao mundo da arte.

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