sexta-feira, 1 de março de 2013

A ficção e o tempo no espaço

1) Corpo estranho na produção de Bolaño (já comentei algo sobre esse livro), O Terceiro Reich é bem anterior ao seu conjunto de obras-primas, 2666, Os detetives selvagens e A literatura nazi na América. Esse livro estranho é também um pouco alegórico - parece sempre querer dizer algo além daquilo que diz, parece sempre fazer referência a um tempo que não é exatamente o tempo da narrativa, o tempo artificial que serve de base para as relações entre os personagens. Isso porque O Terceiro Reich não é um livro sobre personagens, é um livro sobre a relação entre tempo e espaço - ou, levando a hipótese ao seu limite, é um livro sobre a temporalização do espaço e sobre a espacialização do tempo (o que poderia nos levar também em direção à série O Bairro, de Gonçalo Tavares, ou a passagem sobre a Rue Vaneau, em Doutor Pasavento, de Vila-Matas).
2) Sebald faz algo semelhante em Austerlitz, e não é por acaso que os títulos dos livros - tanto o de Sebald quanto o de Bolaño - sejam também referências à guerra e à ocupação de territórios. Se O Terceiro Reich é puro Hitler, Austerlitz consegue ser tanto de Hitler quanto de Napoleão. Na batalha de Austerlitz, Napoleão levou os russos em direção a uma área que conhecia muito bem (havia estudado obsessivamente os mapas da região, desde a adolescência, desde a Escola Militar), posicionando as tropas inimigas sobre lagos congelados. Depois do sucesso da armadilha, rachou o gelo a tiros de canhão.
3) Para Sebald (e para a teoria do trauma de Freud), a memória é um mapa rasgado em milhares de pedaços - alguns deles estão em nossas mãos, mas a grande maioria desses resíduos está espalhada pelo mundo. Em O Terceiro Reich, o passado traumático da Europa e da Alemanha se condensa em um jogo de tabuleiro; o jovem responsável por ele não apenas sobrepõe o tempo de seu presente ao tempo passado da guerra, mas passa a ver sua vida com olhos paranoicos, como se a instabilidade do passado que ele revive dentro de seu quarto pudesse contaminar a experiência da vida presente. Mesmo sabendo que a história já está dada - não há futuro possível para o Terceiro Reich -, ele insiste em seu desejo de transformá-la, desfigurá-la. A única coisa que consegue é arrasar tragicamente sua presença no mundo e sua percepção do tempo (que era, desde o início, o objetivo técnico e estético de Bolaño - por isso a aparente morosidade do romance).  

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