segunda-feira, 11 de março de 2013

Avenida Niévski, 2

1) Como tudo que escreveu Gógol, Avenida Niévski também tem seu lado sombrio. O pequeno ucraniano atormentado gostava de costurar suas frases com ironia e imagens hilariantes - até o momento em que irrompe o horror e a sordidez (Dostoiévski, por exemplo, absorveu intensamente esse segundo movimento abrupto de Gógol). O sensível artista Piscariov vê uma linda moça na avenida Niévski e segue seu cheiro, seus cachos e seus olhares até uma ruela afastada. Ela sobe as escadas de um sobrado estranho e parece incitar Piscariov à perseguição. Uma vez no alto, a armadilha se fecha: "repugnante antro onde a depravação deplorável estabeleceu sua morada, engendrada pela pseudo-erudição e pelo terrível excesso populacional da capital. Aquele antro onde o homem, de maneira profana, reprimiu e riu-se de tudo o que é puro e sagrado e que embeleza a vida, onde a mulher, o encanto do mundo, obra-prima da criação, converteu-se numa estranha e ambígua criatura, onde, juntamente com a pureza da alma, ela se despojou de tudo o que é feminino e apropriou-se, repulsivamente, das maneiras e do descaramento masculino" (Avenida Niévski, trad. Svetlana Kardash, Ars Poetica, p. 35). 
2) Diante desse cenário, Piscariov, "como uma cabra selvagem", "desembestou para a rua". Ele não aceita o choque da realidade diretamente em sua visão romântica. O que é mais interessante é que só a partir do sonho que Piscariov consegue moldar esse choque e absorver esse trauma: ele sonha que a moça lhe manda um carro para buscá-lo para um baile. O tecido duro da cidade invadindo o tecido suave do sonho; o espaço da prostituição e da mercantilização dos corpos como o trauma moderno de Piscariov - são dois temas imensos em Baudelaire e Benjamin ("O espaço de tempo entre o sono e o completo despertar inaugura um intervalo, um entre-lugar, que, para Benjamin, era simultaneamente fenomenológico e alegórico").
3) Gógol não só antecipa a confluência de prostituição, modernidade e sonho, mas antecipa também a potencialização que as drogas oferecem dessa triangulação (os "paraísos artificiais" de Benjamin, De Quincey e Baudelaire), já que Piscariov, não conseguindo mais sonhar com a moça, recorre ao ópio. Mas Gógol também acompanha seu contemporâneo Balzac - a jornada de Piscariov é a jornada de suas "ilusões perdidas", a jornada de sua controlada visão do mundo e da arte que não resiste a tudo de "úmido, plano, reto, pálido, cinzento, nebuloso" que a avenida Niévski representa.  

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