Tumba de Dante, Ravena |
1) Os dois melhores textos de O fazedor - um dos livros tardios de Jorge Luis Borges - são reflexões sobre a sobrevivência de dois escritores: Shakespeare ("everything and nothing") e Dante ("inferno, I, 32"). Os dois Poetas Supremos encontram Deus e são com Ele identificados - Shakespeare é Deus, sem deixar de ser todos os homens e mulheres que criou em suas peças; Dante é Deus, sem deixar de ser também o todo infinito que abarca as camadas de seu Além (e todas as almas, beatas e atormentadas, que criou).
2) Para o Borges do conto "everything and nothing", Shakespeare é uma espécie de partícula de Deus que desce à terra e vive inúmeras vidas: "ninguém foi tantos homens quanto aquele homem, que à semelhança do egípcio Proteu pôde esgotar todas as aparências do ser", escreve Borges. Está armada a analogia com a katabasis de Dante em sua Comédia: a descida às profundezas e a retomada dos céus, em uma dialética que encena a própria proliferação da identidade no tempo e no espaço (Shakespeare é, simultaneamente, um homem comum que não sabe grego e Deus; Dante é, simultaneamente, um míope apaixonado que molda a linguagem segundo seu delírio e Deus).
3) A katabasis de Dante é a viagem às profundezas - mas o ritual que invoca as profundezas é a nekyia (como ensina Homero no Livro 11 da Odisseia). É a viagem dentro da viagem: com o sangue de um sacrifício, Ulisses chama a alma do profeta Tirésias de dentro de um buraco. James Joyce, no sexto capítulo de Ulysses, reconstrói a cena em um cemitério: cita Hamlet ao falar das "sombras das tumbas quando os cemitérios bocejam" e usa uma técnica que batizou de "incubismo", que é precisamente a nekyia, ou seja, a invocação dos espectros e seus pesadelos. "Entre as formas de meu sonho estás tu", diz Deus a Shakespeare no conto de Borges, e completa: "que como eu és muitos e ninguém".
Nenhum comentário:
Postar um comentário