quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Alucinação dirigida

1) Em seu conto sobre Shakespeare ("everything and nothing", O fazedor), Borges tenta conciliar duas dimensões contraditórias: a história cronológica e o mito; as condições sociais do trabalho e o gênio (é a partir da impossibilidade e da incerteza da síntese que Borges lê Shakespeare). Não se sabe - não se pode saber - até que ponto Shakespeare tinha a consciência de ser Deus, de ser um dos avatares do sonho de Deus: "durante vinte anos persistiu nessa alucinação dirigida, mas certa manhã o assaltaram o tédio e o horror de ser tantos reis que morrem pela espada e tantos amantes infelizes que convergem, divergem e melodiosamente agonizam", escreve Borges.
2) Ao identificar Shakespeare - e também Dante, no mesmo livro - com Deus, Borges se mostra intrigado com o fato de suas obras ultrapassarem as condições de possibilidade do que é pensável e dizível em uma época. Deus é o procedimento que torna possível uma imagem literária desse conceito, uma imagem que dê conta desse extravasamento da ficção diante da história. O mesmo se dá com o aleph, que permite uma visão simultânea de todos os momentos do tempo e do espaço (outra elaboração do mesmo tema é a memória de Funes). A obra de Shakespeare faz parte dessa trama que dá acesso àquilo que está além e aquém da história - everything and nothing.
3) Não se sabe se esse acesso é permitido somente aos loucos ou se é justamente por conta do acesso que se alcança a loucura. Esse impasse entre cronologia e mito é enunciado também por Foucault - e não por acidente em um texto sobre Nietzsche. Antes da fundação da história, argumenta Foucault a partir de Nietzsche, há uma "experiência trágica fundamental" ancorada no permanente diálogo entre razão e desrazão na própria constituição do ser. Antes de uma estrutura histórica, que explique a circulação dos textos, há uma estrutura ontológica - que é silenciada pela configuração positivista da cronologia. É essa estrutura ontológica subterrânea que está em questão na justaposição de Shakespeare e Deus, como a coloca Borges em seu conto.         

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