domingo, 27 de fevereiro de 2022

Face a face



1) Em 1969, Elias Canetti publica O outro Processo, seu livro sobre as cartas de Kafka para Felice; em 2005, Ricardo Piglia publica uma reunião de ensaios dedicados à leitura, O último leitor, um dos quais precisamente sobre Kafka e sua relação com Felice. Canetti e Piglia insistem, a partir de perspectivas diversas (e, por isso, complementares), na exasperante consciência que tinha Kafka da materialidade de sua linguagem/literatura - como a passagem da carta para o cartão-postal, por exemplo, ou da escrita manual para a escrita mecânica (da caneta-tinteiro para a máquina de escrever), transforma as ideias, as sensações, as percepções que um sujeito tem de si e do mundo circundante (e também, sobretudo, do mundo possível, daquilo que é projetado, imaginado e desejado a partir da disposição das palavras na página).

2) De resto, a ficção de Kafka está repleta de emissários, copistas, embaixadores, entes imbuídos da responsabilidade de dar conta do discurso (seja em conferências, seja no oferecimento do próprio corpo, como na Colônia penal). Calvino, nas Cidades invisíveis (1972), faz de Marco Polo uma espécie de ponto de atravessamento das informações do mundo diante do soberano - o viajante é um ponto simultaneamente imóvel e cambiante, está diante do soberano como uma sorte de presentificação/corporificação de um Império múltiplo e disperso (ele talvez registre no livro que lemos não aquilo que de fato vê, mas aquilo que o desejo do soberano constrói em sua mente - o fantasma do desejo do soberano é o que torna possível a obra de Marco Polo, da mesma forma que o desejo inacessível de Felice (ou Milena) torna possível a obra de Kafka). 

3) Em um romance de Ignazio Silone de 1956, O segredo de Luca, a relação entre construção da subjetividade e infraestrutura comunicacional é feita da seguinte forma: um homem fica 40 anos na prisão e retorna à cidadezinha de origem, onde conhece finalmente o homem que, quando criança, escrevia as cartas que ele recebia na prisão (a mãe do condenado, analfabeta, trabalhava na casa do menino e pediu sua ajuda para ler as cartas do filho - e, em seguida, a escrever as respostas). É a caligrafia do menino que dá forma às emoções da mãe; é a voz do menino que corporifica/presentifica/atualiza a virtualidade das emoções do preso (o menino é um ponto de atravessamento postal, um medius, que não consegue entender com precisão os sentimentos seja da mãe, seja do filho). O menino lê, escreve, registra e envia - todo essa dinâmica é arquivada dentro de si e revisitada décadas depois, quando encontra finalmente (Agora vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face, 1 Coríntios 13:12) Luca, o preso agora liberto, o ser de papel que agora se transfigura em ser de carne e osso e voz.  

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