sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Enigma e monstro



1) No terceiro capítulo de seu livro O último leitor, intitulado "Leitores imaginários", Ricardo Piglia observa que o Facundo de Sarmiento, publicado em 1845, é um texto contemporâneo dos contos policiais de Poe (o que sugere a ideia de que Sarmiento pode ser visto como uma espécie de Dupin, alguém dedicado a interpretar os signos obscuros da sociedade). Mais do que isso, continua Piglia, é possível reconhecer na escrita de Sarmiento a mesma lógica que guia os contos de Poe: "a tensão entre o enigma e o monstro como base da interpretação dos males sociais" (p. 82-83).  

2) É interessante o modo como Piglia utiliza a ideia do "monstro", o que evoca a ideia de Foucault acerca das "monstruosidades da crítica": o monstro, escreve Piglia, é aquilo que vem de fora, do outro lado da fronteira, de um território estranho que ameaça certa familiaridade ou automatismo (o que se aplica também ao raciocínio de Foucault: sua crítica a Steiner diz respeito justamente àquilo que ele "importa" de outros registros, alheios à realização de As palavras e as coisas - trazendo Freud no lugar de Kant, por exemplo). O "monstro" diz respeito a uma ameaça externa, escreve Piglia - nos contos de Poe, pode ser o gorila de "Os assassinatos da rua Morgue"; em Sarmiento, é Rosas, "metade tigre, metade mulher" (p. 83).

3) Em Poe, comenta Piglia, o que está em questão no "monstruoso" é também a oscilação linguística: o suspeito com frequência é um estrangeiro, alguém que não domina o francês (no caso de Dupin, o detetive que resolve os crimes de casa, lendo os jornais, ou seja, lendo profundamente em sua língua materna). Outro ponto de contato com o texto de Foucault, também este escrito em uma língua estrangeira - na passagem do francês para o inglês, cheio de termos "em francês no original", como dizem tantas notas (petits textes, découpage, sans réalité, bêtise...) -, um registro que confere certa linearidade atípica ao argumento. É por isso que o raciocínio de Piglia em O último leitor termina em Joyce, no Finnegans Wake: texto-monstro, cuja dinâmica se dá exclusivamente na incerteza do idioma, na instabilidade dos sentidos, na falta de solo linguístico firme. 

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