sábado, 7 de agosto de 2021

Clepsidra


1) Dias atrás escrevi sobre ficções nas quais os "resíduos textuais" de terceiros são mobilizados (com exemplos de Piglia e Kohan) - hoje me dei conta (depois de ler as entrevistas do livro Homo poeticus) da centralidade desse tema para Danilo Kiš, especialmente em seu romance Clepsidra, de 1972 (título que vem diretamente de Bruno Schulz). Por vezes difícil e truncado, o romance é todo realizado a partir e ao redor de uma carta que Kiš descobre muitos anos depois de enviada, carta escrita por seu pai em 5 de abril de 1942, destinada à irmã Olga, seu último registro escrito antes de ser assassinado pelos nazistas em Auschwitz em 1944

2) O romance "não passa da exegese de uma carta autêntica de meu pai, datada de 5 de abril de 1942", afirma Kiš em entrevista de 1986 (Homo poeticus, p. 210). Cada frase e cada informação que o pai coloca na carta serve ao filho como disparador de um conjunto de cenas, descrições e desenvolvimentos (muito mais carregados de "imaginação" do que faz crer Kiš nas entrevistas, sempre enfatizando a dimensão "documental" como pano de fundo determinante). A carta, contudo, só é transcrita no final do romance - Kiš faz uso de uma série de estratégias para sua "exegese", oscilando o estilo de escrita em seções intituladas, por exemplo, "cenas de viagem", "notas de um louco" e "investigação criminal" (um ritmo de interrogatório semelhante àquele que Bolaño utilizará em contos como "Putas assassinas" e "Detetives").

3) No último parágrafo do romance - antes da transcrição da carta, que é apresentada em itálico -, que faz parte de uma das "notas de um louco", o pai fala em primeira pessoa e faz referência, finalmente, ao filho, o filho que décadas depois se ocupa de seus resíduos textuais: se nada mais sobreviver, escreve o pai já durante a guerra, talvez "minhas anotações e minhas cartas" possam perdurar como "vida materializada" ("patética vitória humana sobre o imenso, eterno e divino nada"). Talvez meu filho um dia publique minhas anotações e meu "herbário de plantas da Panônia", escreve o pai em sua última frase (e essa ênfase no herbário faz pensar em Rousseau, que tinha o mesmo interesse, como Sebald comenta em seu ensaio dedicado ao autor em Logis in einem Landhaus).

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