quarta-feira, 4 de agosto de 2021

O sonho de Descartes


1) Em ensaio dedicado à "historicidade dos sonhos" (publicado originalmente em 1983 na revista Salmagundi com o título "The Historicity Of Dreams (two questions to Freud)", hoje disponível na coletânea Nenhuma paixão desperdiçada), George Steiner analisa, entre outros, um sonho de Descartes (o "famoso Sonho de Descartes", escreve Steiner) datado de novembro de 1619. O biógrafo Adrien Baillet afirma (escreve Steiner) que o próprio Descartes realizou um minucioso relato escrito do sonho, que não sobreviveu (mas que é a base para a reconstrução do sonho feita por Baillet - que é uma das fontes de Steiner, sendo a outra - e principal - o ensaio de Jacques Maritain, Le songe de Descartes, de 1932).

2) O sonho de Descartes é dividido em três partes, separadas por momentos em que acordou: na primeira parte, um redemoinho o joga contra a parede de uma igreja e ele fica sabendo que um conhecido quer dar a ele um melão; na segunda parte, ele é acordado por um ruído de trovão e vê centelhas de fogo em seu quarto de dormir; na terceira parte, Descartes vê um dicionário e uma coletânea poética aberta em uma passagem escrita no século IV d.C por Ausônio, poeta galo-romano (ainda dormindo, Descartes conclui que aquilo é um sonho e que precisa interpretá-lo, chegando à conclusão que as duas primeiras partes são reprimendas pelo modo como desperdiçou parte de sua vida e que a terceira parte é a revelação da necessidade que tem de seguir o caminho da "verdade universal").

3) Steiner diagnostica no sonho de Descartes uma "sensibilidade barroca", composta por um apego às "convenções retóricas" e à "pluralidade linguística" (já que o sonho articula trechos em francês, latim e grego). Steiner identifica em Descartes um dimensão "retoricamente dramática", "coreográfica" e "sentenciosa" (as marcas da "historicidade dos sonhos", portanto, uma vez que Steiner defende uma hermenêutica historicamente situada e não uma "universalidade sincrônica das equivalências simbólicas"), citando ainda, rapidamente, o modo como Freud evita aprofundar qualquer tipo de interpretação para o sonho de Descartes (em resposta de 1929 a uma carta de Maxime Leroy).

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