Doca Norte, Buenos Aires, 1921 |
1) Meu pai era muito inteligente e, como todos os homens inteligentes, muito bondoso. Meu pai era um homem tão modesto que teria preferido ser invisível. Embora se orgulhasse de sua ascendência inglesa, costumava zombar dela.
2) Mudamos para Madri, e aí o grande acontecimento foi minha amizade com Rafael Cansinos-Asséns. Ainda gosto de pensar em mim como seu discípulo. Conheci-o por intermédio de alguns amigos da Andaluzia.
3) Talvez o maior acontecimento de minha volta tenha sido Macedonio Fernández. Era uma figura pequena de chapéu-coco, esperando por nós na Dársena Norte quando desembarcamos, e acabei herdando de meu pai sua amizade. Os dois haviam nascido em 1874.
4) Esses anos foram muito felizes porque significaram muitas amizades: Norah Lange, Macedonio, Piñero, meu pai... A sinceridade animava nosso trabalho, e sentíamos que estávamos renovando a prosa e a poesia. Naturalmente, como todos os jovens, eu procurava ser o mais infeliz possível, uma espécie de mistura de Hamlet e Raskolnikov. O que conseguimos foi bastante ruim, mas nossa camaradagem perdurou.
5) Para resumir esse período de minha vida, sinto-me em total desacordo com o jovem pedante e um tanto dogmático que fui. Os amigos, porém, estão ainda muito presentes e muito próximos. Na verdade, são uma parte indispensável de minha vida. Penso que a amizade é a única paixão que redime os argentinos.
6) Um dos principais acontecimentos desses anos (e de minha vida) foi o início de minha amizade com Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes me perguntaram como se faz para escrever em colaboração. Penso que exige o abandono conjunto do ego, da vaidade e talvez da cortesia. Quanto às Crónicas de Bustos Domecq, penso que são melhores que tudo o que publiquei em meu nome e quase tão boas quanto qualquer coisa escrita individualmente por Bioy.
7) Em Cambridge, os amigos pareciam multiplicar-se: Jorge Guillén, John Murchison, Juan Marichal, Raimundo Lida, Héctor Ingrao e um matemático persa, Farid Hushfar, que desenvolvera uma teoria do tempo esférico, a qual não entendo muito bem mas espero algum dia plagiar.
8) Tenho outro projeto pendente há muito mais tempo: o de revisar e talvez reescrever o romance de meu pai, El caudillo, como ele me pediu anos atrás. Chegamos até a discutir vários dos problemas; gosto de pensar nessa tarefa como um diálogo ininterrupto e como uma colaboração bastante real.
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Jorge Luis Borges. Ensaio autobiográfico. tradução de Maria Carolina de Araujo e Jorge Schwartz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 13, 33, 41, 51, 53, 64, 77.
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