quinta-feira, 1 de março de 2012

Despertar

1) De certa forma, e até certo ponto, Walter Benjamin iniciou uma história da literatura vista através de um momento crítico: o momento do despertar. O espaço de tempo entre o sono e o completo despertar inaugura um intervalo, um entre-lugar, que, para Benjamin, era simultaneamente fenomenológico e alegórico: quem desperta tem a sensação dos tempos embaralhados, dos corpos mesclados (o seu corpo e os corpos dos outros; seu corpo do passado e seu corpo do presente), e, eventualmente, pode acessar, nessa confusão entre tempo histórico e tempo individual, uma iluminação profana e revolucionária. Algo semelhante devia assombrar Paul Valéry, que acordava todos os dias às cinco e ficava até as oito da manhã escrevendo seus Cahiers.
2) Talvez seja possível dizer que a ideia de um entre-lugar entre sonho e realidade é a força propulsora da obra-prima de Benjamin, as Passagens - as galerias de Paris como uma representação material desse sentimento de nem-lá-nem-cá, de paradoxo, de pertencimento inconcluso. A teoria do despertar de Benjamin vem principalmente de Proust. Benjamin escreve: Proust começa com uma exposição do espaço daquele que desperta. Somente com muita força de vontade, amparados pela muralha do hábito, é possível reconstruir todos os fios do "Eu" no momento do despertar. Mais do que o fluxo da memória, portanto, interessa a Benjamin a tensão entre dois mundos que, apesar de tão próximos, se conservam irreconciliáveis.
3) O outro lado da teoria do despertar de Benjamin está em Kafka - acordando de sonhos intranquilos, Gregor Samsa se vê transformado em um inseto monstruoso. Não apenas A metamorfose, mas também O processo: Josef K. é abruptamente despertado por dois estranhos que lhe dão voz de prisão. Benjamin vê nessa cena inaugural o início de um tempo sem memória, sem perspectiva. Essa dilatação do instante gera, para Josef K., o tempo da loucura e da paranoia. O despertar é a descoberta de um limiar, um lugar de fronteira. Ao contrário de Proust, que observa, no momento do despertar, fragmentos do cotidiano serem ressuscitados em epifanias inesperadas, Benjamin vê no despertar de Kafka o lugar de uma tomada de consciência - uma consciência, porém, que é sempre incompleta, que jamais tem êxito, que fica sempre à deriva.

3 comentários:

  1. Retirado de Ego Scriptor:

    "À quoi penser? pensais je.
    Je me tourvais hors de toute entreprise, et sans engagement, sans envie particulière, sans aucune pointe secrète, et comme opposé à tout, comme devant un buffet de toutes les idées e de toutes les actions,
    prêt e tranquille,
    couché sur la ligne de partage du temps
    Sachant bien, au reste, que les deux royaummes communiquaient que de l´instant.
    Maitre illusoire, mais instant admirable -
    La consicence de cet illusoire même faisant partie de cette puissance réelle.
    Tout puissant, tout clairvoyant, tout rien." (1923)

    Paul Valéry, c.q.d.

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  2. Ah! As páginas que Proust dedica ao tema "sono" são soberbas! Devo tê-las lido umas cinco ou seis vezes! Para mim, um de seus melhores (são tantos) trechos, junto com a beleza exótica daquela passagem em que fala sobre surdez, o leite fervendo, as magnólias brancas do leite... Espetáculo! Visite-me nocaminhodesamantha.wordpress.com

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