1) Na primeira parte de O que resta de Auschwitz, Agamben fala de uma partida de futebol que teve lugar no campo de concentração. As equipes eram formadas pelos militares da SS e por alguns membros do Sonderkommando - presos que eram responsáveis pela vigilância dos outros presos e, entre outras coisas, responsáveis pelo "gerenciamento dos dejetos". Nada mais estranho e deslocado do que uma partida de futebol em um campo de concentração. "Poderia ser considerada uma breve pausa de humanidade em meio ao horror infinito", escreve Agamben, "mas esse momento de normalidade é o verdadeiro horror do campo". Essa naturalidade diante do horror faz com que "a partida não termine jamais", conjurando uma espécie de angústia que "não conhece tempo e está em todo lugar".
2) Nas duas versões cinematográficas de Os homens que não amavam as mulheres, baseadas no livro de Stieg Larsson, uma cena se repete: o assassino, finalmente revelado, começa o seu clássico discurso explicativo (as vítimas, as razões, etc) e mostra uma pequena jaula ao protagonista. "No outro dia, enquanto tomávamos vinho lá em cima", diz o assassino, "havia uma mulher ali dentro". A cena se passa no porão da casa, uma sala ampla cheia de instrumentos de tortura. A mulher da jaula não aparece, já está morta. Mas o espectador tem uma desagradável sensação de cumplicidade com o assassino, porque, de certa forma, assistiu a cena do vinho sem sequer suspeitar que uma mulher era torturada lá embaixo (e agora que sabe, o espectador se sente retrospectivamente culpado por sua falta de atenção).
3) Em Noturno do Chile, a novela de Roberto Bolaño, o padre, crítico literário e poeta Sebastián Urrutia Lacroix é também levado a essa cumplicidade horrenda e tão paradoxal. A cumplicidade do padre Sebastián se dá pela via da vaidade: é convidado a participar de uma espécie de grupo de leituras organizado por um casal da intelectualidade chilena de esquerda. Um dia, no entanto, procurando o banheiro, Sebastián desce as escadas e descobre uma porta no porão, uma porta que leva a uma cela, uma cela que guarda o corpo torturado de um homem anônimo. O sarau, no fim das contas, é apenas uma fachada para melhor identificar os intelectuais subversivos - e entregá-los para a ditadura de Pinochet.
3) Em Noturno do Chile, a novela de Roberto Bolaño, o padre, crítico literário e poeta Sebastián Urrutia Lacroix é também levado a essa cumplicidade horrenda e tão paradoxal. A cumplicidade do padre Sebastián se dá pela via da vaidade: é convidado a participar de uma espécie de grupo de leituras organizado por um casal da intelectualidade chilena de esquerda. Um dia, no entanto, procurando o banheiro, Sebastián desce as escadas e descobre uma porta no porão, uma porta que leva a uma cela, uma cela que guarda o corpo torturado de um homem anônimo. O sarau, no fim das contas, é apenas uma fachada para melhor identificar os intelectuais subversivos - e entregá-los para a ditadura de Pinochet.
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