sábado, 26 de fevereiro de 2011

Os dentes

1) Milan Kundera é um grande ensaísta. Muito provavelmente sua reflexão sobre o literário supera seu exercício literário como ficcionista. A arte do romance foi lançado pela Companhia das Letras, assim como A cortina, que é mais recente. Não é possível dizer que Os testamentos traídos seja melhor que esses dois - todos eles são construídos da mesma forma, a partir de fragmentos que vão ecoando temas comuns a partir de exemplos distintos. Os testamentos traídos saiu pela Nova Fronteira em 1994 e está esquecido há bastante tempo. Em 2009, Kundera lançou Une rencontre, novo volume de ensaios - 4 anos depois de A cortina. Une rencontre já está circulando em traduções para o inglês e para o espanhol, e espero que a Companhia das Letras faça o mesmo por aqui. Os temas de Kundera (em todos os livros de ensaios) são os seguintes: muito Kafka, muito Hermann Broch, muito Flaubert, uma proximidade muito salutar com Gombrowicz, uma retomada muito pessoal e instigante de Henry Fielding, contemporâneos em boa quantidade (Roth, Fuentes, G.G. Márquez, Kenzaburo Oe), um pouco de cinema, muito de Rabelais, muito de música (Bartók, Stravinski, Wagner, Schoenberg), muitos nomes obscuros da Europa Central, um pouco de Alejo Carpentier, o suficiente de Hegel e de totalitarismo. E mais, muito mais.
2) Em A cortina, Kundera se demora bastante na questão do prosaico na ficção - o caráter concreto, cotidiano, corporal da vida. Essa é uma conquista do romance, do olhar reiterado sobre o detalhe banal. Não ocorre a Homero perguntar-se se depois de suas inumeráveis lutas Aquiles ou Ájax conservaram todos os dentes, escreve Kundera. O romance fornece os pormenores, permite que os significados aflorem por si mesmos. O paradoxo da forma romanesca: quanto mais próximo dos fatos da vida, maior a evidência do artifício.
3) Duas passagens de Coetzee: primeiro aquela de O mestre de Petersburgo na qual Dostoiévski, sozinho e oprimido pela dor da perda do filho, arrasado pela necessidade que sente de ir atrás do anarquista que provocou a morte de Pável, senta-se na cama e, antes de dormir, retira sua dentadura e a coloca num copo com água, em cima de uma bancada. A segunda, aquela que encontramos em Elizabeth Costello, a passagem que faz referência a Robinson Crusoe e sua descoberta da função do detalhe realista na narrativa: Robinson Crusoe, naufragado na praia, procura em torno os companheiros de navio. Não há nenhum. "Nunca mais os vi", diz, "a não ser três chapéus, um boné, e dois sapatos esquerdos". Dois sapatos, não parceiros: não sendo parceiros, os sapatos deixaram de ser calçados, passaram a ser prova da morte, arrancados dos pés dos afogados pelos mares espumosos, e atirados à praia.

7 comentários:

  1. Li muita coisa de Milan Kundera e alguns, mais de uma vez - mas nenhum desses livros de ensaios, que coisa.

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  2. Arrancados dos pés dos afogados sem lanterna. A prova do azar.

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  3. O paradoxo da forma romanesca: quanto mais próximo dos fatos da vida, maior a evidência do artifício.

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  4. Acho que o grande mestre contemporâneo da banalidade é o Oz e talvez por isso mesmo muitos de seus livros sejam pouco celebrados. 'Conhecer uma Mulher' exulta nessas cenas onde quase nada acontece e Oz fica por ali, esmiuçando as tarefas mais comezinhas do cotidiano de seu personagem...

    Mas quando o Coetzee lida com esse material a potência é bem diferente, não? Pela própria secura de sua prosa, esses pequenos momentos, de insignificantes passam a querer transbordar.

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  5. Marcus, vc acabou de ler o Mestre de P., não é mesmo?

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  6. "O paradoxo da forma romanesca: quanto mais próximo dos fatos da vida, maior a evidência do artifício" > essa foi a frase que mais demorou pra sair.

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  7. Isso. E é curioso que algumas profundas reflexões sobre o ato de escrever estão ali como quase nada, como um reflexo de uma dificuldade.

    (se eu tivesse o costume de anotar, talvez lembrasse alguns pontos interessantes.)

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