quinta-feira, 22 de abril de 2021

O soldado que ri


1) Se o humor em Sebald muitas vezes surge de situações absurdas e de personagens excêntricos, é possível interpretar esse traço característico como um dos tantos que Sebald elabora a partir de Kafka (e, no caso do humor enviesado, também de Thomas Bernhard, cuja obra está repleta desses tipos involuntariamente cômicos - ou ainda, de tipos cuja mania é tão enfatizada e martelada que chega a tocar o humor a partir do exagero, do absurdo).

2) Em Na Colônia Penal, por exemplo, dois pares muito rapidamente se formam - um procedimento que faz pensar também em Beckett, que trabalhará muito em suas peças esse recurso cômico das duplas envolvidas em diálogos insistentes e absurdos (é possível pensar em Sancho e Quixote, em Cervantes). O viajante conversa com o oficial; o soldado se aproxima do condenado, prestes a ser executado pela máquina de tortura, mas libertado na última hora.

3) Depois de libertado, o condenado permanece próximo ao soldado, enquanto este pesca suas roupas do fundo do fosso usando sua baioneta (roupas que foram rasgadas quando o condenado foi posicionado na máquina de tortura). "Talvez o condenado se julgasse na obrigação de divertir o soldado", escreve Kafka, "com a roupa rasgada girava em círculo diante do soldado, que agachado no chão ria batendo nos joelhos" (p. 62). O riso do soldado certamente não é contagiante - não faz o leitor rir a partir de seu riso; mas o humor sem dúvida existe, está posto na cena, e uma de suas funções é intensificar o absurdo de toda a situação (a pantomima do condenado que recupera as roupas; o soldado que ri, absorto em sua alienação, em seu automatismo).

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