terça-feira, 13 de abril de 2021

Gaio saber visual


1) Em seu ensaio de 1919 sobre a "tradição e o talento individual", T. S. Eliot fala da poesia do presente (da arte do presente) como um evento multifacetado que não atua exclusivamente sobre seu contexto imediato, mas reorganiza também a tradição, o passado e a releitura das obras já lidas (quase vinte anos depois, Benjamin apresenta o revés dialético dessa ideia com a frase da Tese VI: também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer). O artista é um medium atuando como condutor das forças heterogêneas de distintas temporalidades; consequentemente, a arte do presente interfere criativamente sobre o panorama social, político e afetivo imediato enquanto reorganiza "agonísticamente" as experiências diante do passado.

2) Dez anos depois do ensaio de Eliot, em 1929, Bataille inicia a revista Documents - um projeto no qual se percebe claramente esse jogo de reconfiguração da arte do passado a partir da arte do presente, em um jogo de remontagens que não se dá cronologicamente, mas a partir de saltos e contrastes (falando precisamente desse contexto Didi-Huberman escreve que "o anacronismo fabrica a história"). Documents coloca em circulação pela primeira vez obras de Picasso, Miró e Giacometti e, ao mesmo tempo, "todo um corpus de obras de arte antiga até então recusadas pelos estudos tradicionais, inclusive no domínio ocidental (penso nos artigos sobre Giovanni di Paolo, Piero di Cosimo, Antoine Caron)".

3) A citação iniciada acima é do livro que Didi-Huberman dedica ao "gaio saber visual" de Bataille, e ele continua mostrando o peculiar método de montagem de imagens da revista Documents: "Um desenho de Delacroix reproduzido a algumas páginas dos hediondos ex-votos de Notre-Dame de Liesse, por exemplo; ou uma paisagem de Constable mostrada não longe de uma fotografia de acidente de estrada; ou ainda um quadro de Fernand Léger próximo à múmia de um cachorro..." (p. 26-27). O contraste entre "Belas-artes" e "Etnografia" em Documents, por exemplo, permite não apenas o comentário crítico sobre a arte do presente (Picasso e as máscaras africanas), mas também a interferência sobre aquilo que se convencionou como estabelecido no que diz respeito à arte antiga ou à arte do Renascimento (o contraste entre o homem acéfalo e o homem vitruviano). 


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