quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sontag, 1964


1) No célebre ensaio de 1964, "Contra a interpretação", Susan Sontag posiciona em tensão duas possibilidades da arte: "dizer" e "realizar", ou seja, aquilo que solicita a explicação e aquilo que solicita a experiência, a vivência, a fruição. O viés do "dizer", que é o viés da interpretação, argumenta Sontag, tem sido historicamente privilegiado há séculos (e nisso o argumento de Sontag antecipa algumas das posições de Derrida - o ensaio sobre a estrutura, o signo e o jogo é de 1966), desde os gregos, passando pela reconfiguração do Antigo Testamento pelos primeiros cristãos, até chegar na articulação entre conteúdo manifesto e conteúdo latente em Marx e Freud. 

2) A admiração de toda uma vida que Sontag nutria por Barthes não é por acaso: ela percebe nele uma constante atenção à arte do presente e percebe nisso um motor para a crítica (o contato de Barthes com Brecht é o primeiro exemplo forte de reconfiguração de sua crítica a partir da arte). "Contra a interpretação" é o primeiro esforço consciente, público e consolidado de Sontag de transformar o próprio pensamento crítico a partir da arte do presente: os filmes de Elia Kazan, Bergman e Resnais, os romances de Robbe-Grillet e "o ensaio de Randall Jarrel sobre Walt Whitman", entre outros. A arte do presente não pede o cancelamento da interpretação, até porque Sontag sabe que isso é impossível; pede uma reconfiguração e uma expansão da possibilidade de interpretação e mesmo uma desnaturalização da imposição da interpretação (nesse aspecto, mais uma vez faz pensar em Derrida e na ideia de que sempre falamos do interior da metafísica).

3) Em certos momentos a linguagem metafísica em Sontag é flagrante - quando fala da "coisa em si", por exemplo, ou quando fala da obra de arte com aparência "unificada e limpa". Ao mesmo tempo, há um conflito claro entre as referências que ela escolhe elencar: ao mesmo tempo em que elogia o trabalho de Benjamin sobre Leskov (sem, contudo, apontar exatamente o que Benjamin "faz ver" em Leskov que seja pertinente para um paradigma "contra a interpretação"), elogia também o trabalho de Erwin Panofsky, a quem Georges Didi-Huberman, por exemplo, critica em termos semelhantes aos usados por Sontag em seu ensaio de forma geral (em Diante da imagem, de 1990, Didi-Huberman ressalta as articulações "claras, limpas e racionais" de Panofsky diante dos objetos artísticos, "sobredeterminados" por um "neokantismo" disciplinatório).   

2 comentários:

  1. Li pouco de Sontag e confesso não ser (pelo menos ainda) grande admirador desta escritora autointitulada "radical". Coincidência ou não, estive pegando O Jogo da Amarelinha do Cortázar, original de 1963, e o capítulo 79 já antecipa a essência das colocações da Susan de um ano depois: " Uma tentativa dessa natureza parte de uma rejeição da literatura; rejeição parcial, já que se apoia na palavra, mas que deve existir em cada operação que o autor e o leitor empreendam. Assim, usar o romance como se usa um revólver para defender a paz, mudando o seu signo [...] Uma narrativa que não seja pretexto para a transmissão de uma 'mensagem' (não há mensagem, há mensageiros, e isso é a mensagem, assim como o amor é o que ama)." Claro que se trata de mais uma nota do fictício Morelli.

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    1. Uma agulha no palheiro!
      Como tantas outras agulhas incríveis que o Cortázar colocou no Rayuela.

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