2) É digno de nota, contudo, que a noção do relato que conta duas histórias (uma delas latente) já está em Tchékhov, já está em "A dama do cachorrinho", talvez seu conto mais célebre, já está no início da quarta seção daquele que é talvez seu conto mais célebre. Em uma conversa com a filha, Gurov explica por que no inverno não há trovoadas e, no processo, reflete que "levava duas vidas", uma delas evidente, "vista e conhecida por todo mundo", e a outra transcorrendo em segredo. Tudo que importava para ele, continua Gurov (através do discurso indireto livre meticulosamente calibrado de Tchékhov), acontecia na segunda vida, naquela oculta, uma "existência privada" apoiada no segredo ("sob as trevas da noite").
3) Tchékhov, portanto, não só prefigura a teoria do iceberg de Hemingway e a elaboração em tese de Piglia (no sentido criativo da figura: sem as teses de Piglia, a reflexão de Gurov "diria" outra coisa, diversa) como elabora dentro do próprio relato uma crítica (um comentário) à noção da narrativa dúplice: o conto narra a trajetória de consolidação dessas duas camadas simultâneas de vida (vida de casados x vida de amantes), a convivência tensa desses dois registros (privado x público), e em alguns momentos insinua a junção dos dois registros, até que, por fim, na última frase, anuncia que o mais difícil estava "apenas começando" (ou seja, Tchékhov já incorpora ironicamente uma referência à noção de "final aberto", "relato em suspenso").
Nenhum comentário:
Postar um comentário