Abu Nazir e Nicholas Brody |
1) Muito antes de Freud surgir com o conceito de transferência, a complexa relação entre aquele que fala e aquele que escuta (ou aquele que faz falar) já era incansavelmente explorada - o misto de perversão e espelhamento que ocorre em uma sessão de tortura, na Inquisição ou nos regimes totalitários do século XX. Boa parte da ficção e do ensaísmo de Herta Müller, por exemplo, busca a complexificação ficcional e discursiva desse momento que mistura sedução e violência, com o interrogador de O compromisso - com sua proximidade corporal, os fragmentos de saliva saltando de sua boca - sendo a imagem mais emblemática dessa mescla de invasão política e sexual (algo que se encontra também na ficção de Danilo Kis e Bolaño).
2) Assim como Charcot diante das histéricas ou os inquisidores diante das bruxas, o interrogatório político no totalitarismo também passa por uma dimensão terapêutica - ou seja, um desejo de conversão, de intervenção, que vai para além do corpo físico daquele que sofre. Foucault leva à dimensão da sexualidade essa constatação óbvia na dinâmica da tortura: o que está em jogo não é a eliminação do discurso, mas sua multiplicação e o progressivo controle e manutenção desse excesso de discurso. Como aponta Carlo Ginzburg sobre os andarilhos do bem, há um breve e raro momento no qual o discurso dos capturados surge ainda cru, e é precisamente essa crueza o signo da ilegibilidade dessas "vidas infames" diante do poder.
3) Numa cena do décimo episódio da segunda temporada do seriado Homeland, Abu Nazir, o "terrorista" responsável pela tortura e conversão do soldado americano Nicholas Brody, revela uma descoberta: "às vezes, quando você está quebrando um homem, uma transferência emocional acontece; é uma espécie de amor". Abu Nazir parece seguir em parte a argumentação desenvolvida por Bataille ao longo de anos: a tortura tem uma espécie de eficácia ontológica, na medida em que desnuda o ser humano de suas camadas feitas de civilização e repressão - a tortura faz parte, portanto, da própria constituição do que é ser humano (em relação a si e em relação aos outros), costurada aos diversos projetos de sociedade e viver-junto desenvolvidos ao longo daquilo que se chama história (daí a emergência desconfortável desse ponto cego que reúne desejo, violência, morte, sexualidade e ficção).
Falcão,
ResponderExcluirConfesso que tenho dificuldade com seu comentário: "a tortura tem uma espécie de eficácia ontológica, na medida em que desnuda o ser humano de suas camadas feitas de civilização e repressão - a tortura faz parte, portanto, da própria constituição do que é ser humano (em relação a si e em relação aos outros)". Isso me parece quase um endosso da tortura, vista como método para "revelar o ser" e não "uma violência contra o ser".
A propósito da transferência e contra-transferência no processo de tortura, não posso deixar de pensar em Winston Smith, protagonista de "1984" de George Orwell, quando ao final do romance, depois de manifestar o desejo de "transferir o sofrimento" de si para outra pessoa, confessa que "amava o Grande Irmão".
Olá, George
ResponderExcluirObrigado pelo comentário.
O comentário sobre a tortura é do Bataille, e desde o início gerou problemas - acho que o mais eloquente é Walter Benjamin quando diz que achava que Bataille e seus colegas do Colégio de Sociologia "trabalhavam para o fascismo" (eu já escrevi sobre isso algumas vezes nos últimos anos, tá espalhado pelas etiquetas de Bataille, Benjamin e Agamben).
Excelente lembrança a sua do Orwell, essa cena é antológica (vou até marcar o Orwell na postagem depois desse seu comentário).