quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Escola da suspeita

1) Gianni Vattimo, ao repassar o pensamento filosófico a partir da perspectiva do início dos anos 1980, dá ênfase ao "problema do significado de Nietzsche na cultura contemporânea", afirmando que "esse significado dificilmente se deixa reduzir ao de uma pura profissão de ceticismo ou de relativismo historicista", mas que "a herança de Nietzsche é hoje recebida e desenvolvida naquela vasta orientação do pensamento que pode ser apontada como 'hermenêutica' e 'crítica da ideologia', e que se reconhece como escola da suspeita". 
2) Tal "escola da suspeita", argumenta Vattimo, ganha uma espécie de elaboração secundária - ou seja, escapa da esfera de ação imediata de Nietzsche e absorve elementos acessórios. "Essa escola", continua Vattimo, "tem entre suas bases a noção marxiana de ideologia, a freudiana de sublimação (e de todos os processos de simbolização das pulsões desviadas pela satisfação imediata), a nietzschiana da cultura como 'mentira'". A assimilação de Nietzsche a essa equação, no entanto, não é pacífica: a obra de Nietzsche atua no "pensamento contemporâneo" "destacando diferenças, evidenciando problemas e contradições", escapando de uma tendência "que ainda seja orientada pelo ideal de chegar, para além dos desmascaramentos e das desmistificações, a um fundo 'verdadeiro', seja ele a estrutura econômica, a estrutura pulsional ou o ser entendido como fonte inesgotável do dom-destino da história" (Vattimo, Diálogo com Nietzsche, ensaios 1961-2000, tradução de Silvana Leite, WMF Martins Fontes, 2010, p. 275).
3) Já em seu ramo freudiano que a escola da suspeita investia numa espécie de "fundo falso da verdade", algo que é sugerido desde os textos pré-psicanalíticos de Freud até culminar na Interpretação do sonho. Nesse conjunto teórico inicial, Freud desvia a percepção corrente no que diz respeito à memória - ou seja, de que há uma operacionalidade consciente no jogo da memória que é predominante -, argumentando que a memória que interessa à teoria não é aquela dos acontecimentos, e sim uma memória do inconsciente, ligada aos traços e imagens que persistem desses acontecimentos (em outros termos, aquilo que do acontecimento é narrativizado pelo inconsciente). Nesse sentido, é possível dizer que Freud antecipa Saussure em sua intuição de que é o ponto de vista que cria o objeto - a verdade não é portanto imposição do mundo exterior (um objeto a ser interiorizado), mas desdobramento de um traço discursivo que é resgatado pela análise.

3 comentários:

  1. Que engraçado ler o Vattimo recuperando a versão do Foucault sobre os mestres da suspeita para dizer que Nietzsche seja representativo da tradição hermenêutica. Porque é exatamente o contrário daquilo que defende Friedrich Kittler, tudo porque vê-se em Nietzsche - e tendo a concordar - o exercício franco do desafio da noção de Eu como síntese da consciência tão cara aos discípulos de Schleirmacher.

    Dá uma geral no Discourse Networks, 1800/1900. Se é que já não deu.

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    1. Refra, o post seguinte a esse é justamente pra mostrar que essa recuperação da visão do Foucault não foi casual.

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    2. E também uma espécie de glosa ao teu comentário.

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