terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Crítica e fracasso

Foto feita por Emile Zola de seus filhos, 1897
1) Comentando a lista de "dez bons livros" que Freud fez a pedido de um editor, Peter Gay escreve que "tendo a oportunidade de mencionar não apenas um, mas sim dois romances de Zola, ele escolheu os mais notórios fracassos literários do escritor". Ligado a isso, está o fato de Freud "jamais se afastar de seu consultório", e sempre que viajava ou comparecia a peças, concertos ou óperas, estava atento para qualquer coisa que pudesse "revelar-lhe algo sobre o funcionamento da mente". No caso da escolha dos livros de Zola para sua lista, parece valer mais para Freud uma espécie de exemplaridade psicológica do que um tênue sentimento de intervenção estética (o que geraria, consequentemente, um sistema diverso de valoração artística, comprometido com o arcabouço teórico da psicanálise - "Lendo Freud através das leituras de Freud", Lendo Freud, investigações e entretenimentos, tradução de André Cardoso, Imago, 1992, p. 156-157).
2) A ética de trabalho compulsiva de Freud o leva, portanto, a uma espécie de des-hierarquização dos elementos encontrados, uma percepção aguda de que não há valor prévio estabelecido para um artefato qualquer (um livro, um chiste, um trocadilho, uma imagem, uma civilização). Peter Gay dá como exemplo o caso do marido dedicado, muito citado por Freud, que se volta à esposa e diz: "Se um de nós morrer, eu me mudo para Paris". Esse método de atenção variada e constante foi compartilhado por Warburg na construção não apenas de seu Atlas, mas em todo o trabalho prévio de coleta e catalogação dos materiais - em A imagem sobrevivente, Didi-Huberman comenta a heterogeneidade desse material e a tendência de Warburg a buscar uma "pregnância antropológica da imagem", sua possibilidade de desvincular a leitura dos sentidos clássicos mais do que reforçá-los (cartões-postais se misturavam a recortes de jornais e revistas e reproduções fotográficas de afrescos, capelas, frisos e esculturas diminutas) (tradução de Vera Ribeiro, Contraponto, 2013, p. 386-387).
3) Outro contemporâneo que capturou de forma singular esse jogo da des-hierarquização das referências é Slavoj Zizek (como fica evidente, por exemplo, em sua mistura de Kung Fu Panda e Mozart). Mas a semelhança não é apenas de analogia, e sim de método - seu esforço de resgatar as premissas da investigação psicanalítica é deliberado, com uma ênfase na construção de uma "merdologia", uma "dreckologia" do contemporâneo, uma cartografia de seus detalhes negligenciados ou recalcados ("Deus está nos detalhes", dizia Warburg), desde Hollywood até as perversões da dialética hegeliana (e num nível ainda mais subterrâneo é possível observar que também com Zizek há aquela "impossibilidade de se afastar do consultório" que Peter Gay constatou em Freud: "Só me permito desfrutar das coisas quando consigo convencer-me de que esse gozo serve para alguma coisa, serve a uma teoria", escreve ele).   

2 comentários:

  1. Falcão,

    Quais foram os romances de Zola escolhidos por Freud? Aqueles que Peter Gay chama de seus "mais notórios fracassos"?

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