sexta-feira, 29 de julho de 2011

Monsieur Pain

1) Na nota preliminar que inicia Monsieur Pain, Roberto Bolaño escreve que uma das características mais marcantes do Tempo é seu senso de humor - el tiempo es un humorista de ley, são as palavras de Bolaño ["um humorista de primeira", são as palavras do tradutor Eduardo Brandão, na recente edição da Companhia das Letras]. Não estaríamos, portanto, submetidos a um regime do acaso, mas sob a influência de uma entidade que aprecia observar as consequências de seus próprios jogos. Bolaño faz essa observação por conta da diferença abissal existente entre sua vida na época em que escreveu MP [início da década de 1980, quando trabalhava como vigia noturno e vendedor de bijuterias] e a época em que escreveu a nota preliminar [1999, logo depois de publicar Os detetives selvagens e receber o Rómulo Gallegos]. Mas o Tempo também mostra seu senso de humor na própria composição da novela, uma das melhores de Bolaño - e talvez a que tenha lhe dado mais trabalho, por fugir de certa "área de conforto" que ele mesmo construiu para si, ou seja, aquela área que abrange a América Latina na década de 1970 e os escritores esfomeados e ambiciosos que por ela circulavam.
2) A composição da novela mostra o senso de humor do Tempo por uma série de razões: 1) Bolaño desloca a ação para a Paris de fins da década de 1930 [esse é também o primeiro gesto de saída da área de conforto], focando as manifestações tardias de uma prática terapêutica conhecida como o "mesmerismo"; 2) A epígrafe do livro vem de um conto de Poe chamado "Revelação mesmérica", escrito quase 100 anos antes da época em que se passa Monsieur Pain; 3) Paris, em 1938, acumulava uma série de fluxos vanguardistas: os mesmeristas tardios estavam em contato com surrealistas tardios e dadaístas tardios, e todos esses também em contato com discípulos de Marie Bonaparte [a psicanalista formada e analisada por Freud, uma das difusoras da psicanálise na França], discípulos de Pétain, discípulos de Marcel Mauss [discípulo e sobrinho de Durkheim], discípulos de Marx, discípulos de Napoleão, entre outros; 4) Todas essas confluências se complicam quando Bolaño coloca o poeta peruano César Vallejo na história, que efetivamente morou em Paris, adoeceu, consultou mesmeristas e lá também morreu.
3) Monsieur Pain, dessa forma, aglomera uma porção de tempos: revisita a vida complicada de Vallejo no exílio e, de forma oblíqua, a própria poética vanguardista latino-americana da época [Vallejo, em Monsieur Pain, é também uma espécie de Lautréamont tardio, uma espécie de duplo daquele Lautréamont que Cortázar transformou em personagem no primoroso conto "O outro céu"], especialmente sua tensa e fecunda relação com a Europa. Outra sobreposição interessante: Bolaño arma sua história a partir de duas facetas de Poe, que em Monsieur Pain estão unidas: a preocupação com os estados "subterrâneos" da mente e suas histórias policiais [porque MP também é um romance noir]. Assunto para uma próxima vez: pensar Monsieur Pain como uma reescrita latino-americana de Monsieur Teste, de Paul Valéry [com todos os agravantes que a aproximação de Teste e Pierre Menard pode trazer (e Valéry traz também a aproximação entre Baudelaire e Poe)].

3 comentários:

  1. Sabe, Kelvin. Você tá ficando mais velho, e segue voraz - leitor e escritor voraz. Mas como as coisas começam a ter maior distância a percorrer a cada redação, como os temas estão ficando maiores, tenho a sensação de que está começando a doer de verdade, ou que no mínimo está faltando ar na hora de escrever. Não preciso dizer que, um tanto quanto sádico, gosto cada vez mais do que está fazendo. Tem suor aí.

    ResponderExcluir
  2. Vc tem toda razão: é cada vez mais difícil encontrar a medida do que dizer e do que elidir, e é justamente nessa articulação que está toda graça de escrever o que quer que seja. Mas não fácil. E eu não tenho, nem de longe, todo o tempo que gostaria.

    ResponderExcluir
  3. Estava em dúvida se adquiria esse novo Bolaño, por já estar meio que exausto do autor. Mas assim que acabar de digitar isso aqui, correrei lá no site da LC para encomendar o volume. Tenho aqui duas resenhas de Bolaño, caso te interesse:

    http://charllescampos.blogspot.com/2010/11/estrela-distante-de-roberto-bolano.html

    e

    http://charllescampos.blogspot.com/2010/09/2666.html

    ResponderExcluir