sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Quantas mortes mais

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1) Saer começou a escrever O grande em 1999. Quando morreu, em 2005, o livro ficou inacabado. O último capítulo ficou com apenas uma frase e o penúltimo, ainda que completo (com o mesmo tamanho dos anteriores, etc), não foi revisado e, por isso mesmo, apresenta alguns cortes bruscos, algumas lacunas (o que não fica nada mau; talvez seja o capítulo mais interessante do livro, justamente por seu caráter provisório - o disforme deixa o ficcional mais atraente).
2) Saer começou a escrever O grande depois de ler Os detetives selvagens - Bolaño havia recebido o Rómulo Gallegos poucos meses antes. Esse contato se faz sentir, fortemente (de resto, é impossível ficar indiferente diante de Os detetives selvagens ("sabia que estava diante de uma obra-prima", disse o editor Herralde); pode-se imaginar, diante disso, o misto de surpresa, deslumbramento, inveja e incredulidade que pode ter sentido Saer diante do livro, do autor e do prêmio - elementos que ofereciam uma oportunidade completamente indesejada de repensar seu próprio percurso, sua obra, seu estilo, os livros que ainda desejava escrever (e talvez esse desejo tenha sido a parte mais atingida no processo)).
3) No penúltimo capítulo de O grande (aquele, o mais interessante), aparece a transcrição do manuscrito que ilumina o contexto histórico e cultural do movimento precisionista - ou seja, a versão saeriana do real-visceralismo (o movimento literário de Os detetives). O precisionismo percorre todo o livro de Saer - é o instrumento narrativo que lhe permite voltar aos anos 1940, 50 e 60 na Argentina (bem como a possibilidade de pensar a sobrevivência desses anos na Argentina do início do século XXI).
4) Saer cria tudo, com calma, com a acumulação progressiva que lhe é tão característica: as revistas literárias, os nomes dos participantes e dos diferentes grupos, os fundadores, os desertores, os visionários, as intrigas, os títulos dos livros, os títulos dos poemas, as motivações, as justificativas políticas, as desculpas estéticas, os precursores, os manifestos, as palavras de ordem, enfim, tudo que arma o precisionismo e seu entorno.
5) Nunca antes na história de sua obra Saer foi tão detido e específico na radiografia de um movimento literário quanto em O grande - tão meticuloso na tarefa de conferir vida própria a figuras que, na página seguinte, já não existirão. O grande não leva o nome em vão: é o maior livro de Saer, levado adiante teimosamente, e seria ainda maior se a morte não o tivesse interrompido (lembre-se do capítulo final com uma única frase).
6) O grande trava uma luta feroz com Os detetives selvagens. O resultado é um produto estranho tanto para os leitores de Saer quanto aos leitores de Bolaño, uma interrupção, uma suspensão. O que mostra que só há choro e ranger de dentes na vida do leitor de um autor só - um leitor marcado por pertecimentos rijos (auto-impostos, ainda por cima). Os personagens-fetiche de Saer, presentes, evidentemente, em O grande, estão ali, mas não confortáveis como sempre estiveram. O lugar, agora, é dos fantasmas - desses homens menores que nunca mais aparecerão.
7) Saer acompanhou a morte de Bolaño durante a escrita de O grande - estava no ponto médio, aquele ponto que já abandonou o início há tempos, mas que ainda não vê sequer sinal do fim (o fim é a angústia rotineira, o pão de cada dia). E no fim, no verdadeiro fim, no inelutável fim, deitado na cama do hospital, Saer pode ter pensado: por deus, quantas mortes mais esse livro terá que ver?
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