terça-feira, 21 de setembro de 2010

Uma barafunda de olhares

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1) André Kertész, húngaro, nascido em 1894, morto em 1985, ensinou Brassai a fotografar, em Paris. Kertész chegou à França em 1925, ficando por lá um pouco mais de dez anos: por conta do nazismo, vai para Nova York em 1936, a convite da agência Keystone. Em Paris, a vida, claro, era boa: o grupo fiel de amigos incluia Mondrian e Chagall; Kertész vivia das fotos que tirava enquanto percorria as dobras mais íntimas da cidade. Ao contrário de boa parte de sua família, especialmente de seu primo István Kertész, pai do escritor Imre Kertész, André escapa da morte e encontra refúgio nos Estados Unidos.
2) Os primeiros anos americanos foram ingratos: é considerado um inimigo estrangeiro, por conta de sua nacionalidade; dificuldades para arranjar emprego, para comprar material e, portanto, para seguir fotografando. Em 1946, consegue um emprego em uma revista de decoração - passa os quinze anos seguintes tirando fotos de interiores de casas de americanos milionários.
3) No primeiro dia do ano de 1972, André Kertész tira uma foto na Martinica: a imagem de uma sacada, de uma vista para o mar, de um corpo desconhecido e embaçado que contempla a mesma paisagem, um fragmento de paisagem, um pedaço de céu escuro e de mar que o corpo desconhecido contempla, e que vemos através de um vidro impuro, dentro de uma fotografia que já é a mediação de outro olhar, o olhar de André Kertész, que nos obriga a olhar o mar, o corpo estranho e nos obriga, também, a fantasiar esse outro corpo, esse corpo ausente do fotógrafo, ausente mas determinante para a cena que transcorre (é por causa dessa ausência que estamos aqui), e, diante dessa sobreposição de olhares, saímos logrados: o real é irredutível, a representação é sempre fosca, o realismo é ruído - meia-noite, a chuva castiga a janela. Não era meia-noite. Não chovia.

4) Esta foto se repete em duas capas de livros, livros escritos por dois escritores fundamentais para mim: Enrique Vila-Matas e Amilcar Bettega Barbosa. Dois livros de contos: Exploradores del abismo e Deixe o quarto como está. A música do acaso - que curioso, que coincidência, a mesma foto. O fato é que não gosto de nenhum dos dois livros (e nunca aceitei muito bem isso). Nesse processo (nesse julgamento), há uma barafunda de presenças, de olhares, pois os livros são confrontados com aqueles que vieram antes e aqueles que vieram depois. Eu sou o fotógrafo que coloca Deixe o quarto como está atrás do vidro, separado, embaçado, fosco, recusado, deixando a limpidez do mar e do céu para Os lados do círculo e O voo da trapezista. Mas também sou o corpo ausente, irrelevante para a cena, ignorante a respeito do destino do corpo fosco e completamente alheio à construção da limpidez do céu e do mar. No fim das contas, aquilo que escondi atrás do vidro como supérfluo, como banal, pode, de repente, abruptamente, mostrar um rosto fulgurante, assustador em seu fôlego, em sua força, e me deixar completamente sem palavras, no exato instante em que se lança no vazio.


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