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1) Sebald falando de Robert Walser na Serrote, comentando a intensa ligação que sente com o escritor, uma ligação que é reforçada pela semelhança que ele encontra entre Walser e seu avô, dois caminhantes, dois homens que cultivavam o pudor, a desaparição - tanto Walser quanto o avô de Sebald morreram em 1956. E se pergunta Sebald: O que querem dizer essas semelhanças, entrelaces, correspondências? Será que se trata de rébus da memória, de autoengano, ilusão dos sentidos ou de esquemas de uma ordem a nós incompreensível, subjacente ao caos das relações humanas e que se estende por igual aos vivos e aos mortos?
2) Esse é o cerne do trabalho de Sebald: buscar os rastros dessa rede sutil que liga vivos e mortos, essa rede subjacente ao caos das relações humanas - rastros que são pequenas miudezas, fotos, cartões postais, maletas surradas, prontuários, velhas carteiras de identificação. As fotos em seus livros não são apenas acessórios estéticos, ilustrações para tornar o texto mais palatável - as fotos são o próprio percurso, as marcas da arqueologia. Escreve Sebald: Em meu trabalho, sempre tentei demonstrar minha estima por aqueles por quem me sentia atraído, erguendo-lhes, por assim dizer, meu chapéu ao lhes tomar emprestado uma imagem atraente ou algumas expressões. Talvez esse trecho esteja perfeitamente adequado para Stendhal em Vertigem ou Nabokov em Os anéis de Saturno, mas, com Walser, a ligação vai além, e funciona como um ritual de conjuração: mas uma coisa é erguer um marco em memória de um colega que se foi, e outra quando não conseguimos nos livrar da sensação de que alguém nos acena da outra margem.
3) Algo semelhante está na relação de Imre Kertész com Sándor Márai. Lendo os diários de Márai, Kertész encontra um momento em comum, um contato descoberto muitos anos depois. Márai, com 44 anos, passa de trem pela fábrica de tijolos que serve de prisão para Imre Kestész e tantos outros judeus. Imre tem 14 anos. No caminho o trem passa próximo à fábrica de tijolos de Budakalász. Sete mil judeus da região de Budapeste esperam ali, entre os galpões de secagem de tijolos, pela deportação. À margem dos trilhos veem-se soldados com metralhadoras, diz o diário. Imre Kertész está lá, e se pergunta se Sándor Márai teria visto o menino com a estrela amarela, se saberia o que ele não sabia, ou seja, que o destino era Auschwitz. O que significa tudo isso?, pergunta-se Kertész. É difícil desvendar. Quem sabe uma constelação especial. Uma constelação especial que une vivos e mortos sob o caos da existência humana. Uma cartografia vasta, cheia de confluências misteriosas, angustiantes.
4) Escreve Sarmiento, no Facundo: quando a tormenta passa, o gaúcho fica triste, pensativo, sério, e a sucessão de luz e trevas continua em sua imaginação, do mesmo modo que, quando fitamos o sol, seu disco fica por um bom tempo em nossas retinas. A vida de Walser queimou as retinas de Sebald, assim como a espera por Auschwitz queimou as de Imre Kertész - sucessões de luz e trevas que continuaram, durante anos, em suas imaginações. Muitos anos depois, por acaso, situações análogas encaixam perfeitamente naquela marca antiga, naquele sulco que o caos arcaico deixou em cada um deles.
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