segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Desarquivando Márai

Budapeste, 1922
1) Foi Roberto Calasso quem redescobriu Sándor Márai, no início da década de 1990: estava em Paris, lendo livros lançados em fins da década de 1940 por uma editora há muito falecida. Livros de autores do Leste Europeu; livros traduzidos para o francês de línguas como o húngaro, o tcheco e o croata. É aí que Calasso encontra As brasas, de Márai, e decide publicá-lo - e meses depois está na Feira de Frankfurt convencendo americanos, espanhois, ingleses e franceses a fazer o mesmo.  
2) Essa póstuma congregação de idiomas em torno de Márai não deixa de ser curiosa: Márai, assim como seu contemporâneo Nabokov, fez um proveitoso uso das línguas, das viagens e do exílio. Ambos coroaram com a América um périplo que incluiu, entre outras cidades, Berlim, Paris, Roma, Zurique, Londres. Márai tinha fama e leitores já na década de 1930, enquanto Nabokov passava trabalho para publicar poemas em revistas de emigrados (a situação, no entanto, se inverte a partir da década de 1950).
3) Esse múltiplo pertencimento de Márai lhe deu o instrumental necessário para perceber Kafka com muita antecedência: "Márai foi um dos primeiros a reconhecer o significado de Franz Kafka fora do território de sua língua natal", escreve Imre Kertész, "e em 1922 já tinha traduzido suas melhores narrativas para o húngaro". Essa subterrânea curiosidade que une os fios de uma história literária que não respeita restrições de idioma, geografia ou tempo.        

domingo, 30 de dezembro de 2012

Três húngaros

Thomas Mann e Sándor Márai, Budapeste, 1935
1) São escritores húngaros de três gerações: Gyula Krúdy, Sándor Márai e Imre Kertész. Em um dos ensaios de A língua exilada, Kertész escreve: "eu poderia falar da topografia de Gyula Krúdy durante muito tempo" (e o mesmo sem dúvida valeria para Sándor Márai) - ou seja, as praças, ruas, panoramas, becos e monumentos de Budapeste. E com "as paisagens de Budapeste" e "as imagens de Budapeste", segundo Kertész, que Krúdy recria o "mito fundamental de Dante".
2) Dante? Kertész argumenta que muitas das histórias de Krúdy são caminhadas pela cidade - geralmente são duplas que, conversando, vão desbravando recantos cada vez mais obscursos e sinistros de Budapeste. Kertész faz referência a um romance específico de Krúdy, O prêmio das mulheres, de 1919, "justo em meio ao inferno europeu", escreve Kertész, e continua: "mais ao Ocidente, nascia naquele momento o romance que no final evocava o pensamento de Dante: da orgia universal da morte e da catástrofre... renascerá o amor?. Essa é a Montanha mágica, de Thomas Mann".  
3) Essas palavras de Kertész, lidas como cartas na Rádio Europa Livre em 1991, são, portanto, muito anteriores ao recebimento de seu Nobel em 2002. Kertész não está fazendo uso de sua influência para lançar luzes internacionais sobre os escritores que gosta - ao falar de Krúdy e Márai, está marcando sua linhagem (por isso Kertész, algumas páginas adiante, insiste em uma frase que encontra nos diários de Márai: tive que fugir da Hungria para ser um escritor húngaro).

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Libertação

Sándor Márai, 1924
1) Libertação mostra um Sándor Márai distante de seus temas recorrentes - ele desloca a narrativa do interior burguês (as casas, as mobílias, as conversas, os jantares, as roupas, os segredos) em direção à voragem da guerra. Libertação demorou mais de cinquenta anos para ser publicado - foi editado postumamente em 2000, e Márai o escreveu logo depois da guerra, aproveitando sua própria experiência de refugiado e fugitivo na Budapeste da II Guerra Mundial.
2) É importante, dentro da poética de Márai, esse deslocamento de cenários: se em 1934-35 ele estava publicando Confissões de um burguês e, no ano seguinte, Divórcio em Buda (justamente o ano em que Benjamin e Lukács estão refletindo sobre os vínculos entre narração, burguesia e sociedade), dois livros bastante emblemáticos da Primeira Fase de Márai, com a guerra esse retraimento será abandonado.
3) Os principais eixos dos livros de Márai anteriores à guerra sobrevivem também em Libertação - com a diferença sensível de que nesse livro esses eixos foram desfigurados pela vivência da destruição. O viver-junto de Libertação não é o mesmo de As brasas: não mais a sala ampla com lareira, mas o porão úmido e insalubre; não mais a conversa sobre acomodações em Marienbad, mas a engenharia dos corpos no refúgio; não mais as cascas de laranja cristalizada, mas o pedaço de pão mofado dividido entre cinco.   

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Os porões

1) Como visto já em A música de uma vida, de Andrei Makine, a ideia do esconderijo ocupa uma posição de destaque no universo totalitário - é o espaço de resistência por excelência e, simultaneamente, a imagem mais bem-acabada do medo, da fuga, da impossibilidade de seguir adiante. O homem do subterrâneo de Dostoiévski ganha outra dimensão, amplia seu pesadelo solipsista em direção a uma tragédia global, inabarcável, irrepresentável.
2) Em Libertação, de Sándor Márai, o drama se passa quase que inteiramente dentro de um porão - um esconderijo com dezenas de pessoas amontoadas, compartilhando odores, dejetos e a espera. Os russos estão chegando a Budapeste - trazendo a ainda desconhecida e amarga "libertação". Os alemães estão encurralados e podem decidir metralhar a todos antes da retirada.
3) A agonia do esconderijo, sua carga ambivalente - morte e libertação sempre em paralelo, junto com a incerteza e a esperança. "Não se pode olhar dessa forma para as pessoas. Os animais vivem melhor", fala Erzsébet, a protagonista de Márai: "Agora sinto que algo está acontecendo. Não sou bolchevique, mas sinto, entende? Sinto com meu corpo que os russos vão trazer algo, que vamos sair, o senhor e eu, e todos os outros, judeus, cristão, proletários, senhores, vamos sair dos porões, vamos voltar para a superfície da Terra, e tudo será melhor". 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Sonho e ruína

Karl Briullov, O último dia de Pompeia, 1830-1833
1) Em março de 1971, George Steiner dá uma conferência na Universidade de Kent, na Inglaterra, que tem por objetivo indicar sugestões para uma redefinição da cultura da época. Steiner argumenta que a cultura do século XX, especialmente após a II Guerra, trava um intenso diálogo com o romantismo do século anterior. Esse contato, entretanto, privilegia uma camada subterrânea do movimento romântico: antes a exploração social do que a alta civilidade; antes a hipocrisia do que a liberdade de pensamento; antes a ameaça do Estado do que a segurança. A cultura do século XX, portanto, quando se volta para seu passado recente, procura a violência que lhe constituiu – principalmente aquela que está contida nos objetos artísticos da época. Nas palavras de Steiner:
É precisamente a partir da década de 1830 que se pode observar a emergência de um “contra-sonho” - a visão da cidade arrasada, a fantasia da invasão dos citas e dos vândalos, dos corcéis mongóis a matar a sede nas fontes dos jardins das Tulherias. Desenvolve-se uma estranha escola de pintura: quadros de Londres, Paris ou Berlim vistas como ruínas colossais, edifícios famosos queimados, saqueados ou localizados em uma desolação misteriosa entre restos esturricados e águas estagnadas. A fantasia romântica antecipa a promessa vingativa de Brecht, de que nada restará das grandes cidades exceto o vento que sopra através delas. Exatamente cem anos depois, essas colagens apocalípticas e esses desenhos imaginários do fim de Pompéia se transformariam em nossas fotografias de Varsóvia e Dresden. Não é necessário a psicanálise para sugerir o quanto havia de realização de desejos nessas sugestões do século XIX.
George Steiner. No castelo do Barba Azul: algumas notas para a redefinição da cultura. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 29-30.
2) A ideia da arte que sonha a história a partir de uma leitura retrospectiva do tempo. Mais do que uma antecipação de Brecht, realizada pela inventividade romântica, como assinala Steiner, vale notar a intervenção que é possível realizar, a partir de Brecht e de sua promessa vingativa, sobre a matéria informe da história (feita de tempos sobrepostos e cruzados). Os quadros românticos das capitais destruídas só surgiram em toda sua potência de significação depois das imagens de Dresden e Varsóvia. A partir da I Guerra Mundial, o “contra-sonho” da experiência do século XIX se torna a realidade imediata - está na "ordem do dia".
3) Será o tempo de Walter Benjamin, em consonância com seu amigo Brecht, cristalizar a imagem do processo histórico na nona tese: um anjo com o rosto voltado para trás, as asas estufadas pelo vento, contemplando as ruínas que o progresso deixa atrás de si – imagens que traduzem o tempo a partir de confrontamentos desconfortáveis, como a visão dos cavalos mongóis matando a sede nas fontes clássicas francesas. A literatura apresenta alguns dos artífices da articulação do contra-sonho romântico com o tempo presente: no período entre-guerras, Joseph Roth, Isaac Babel ou Bataille; no pós-II Guerra, Gert Ledig, Sebald ou Andrzej Kusniewicz.

domingo, 23 de dezembro de 2012

A eucaristia da leitura, 1

1) Quando decide ser mais específico, George Steiner deixa claro que condena o "comentário de circunstância", a nota jornalística rasa, que torna a experiência de leitura rala e insípida, homogênea e banal. Somente o exercício filológico exaustivo pode romper esse círculo vicioso - uma "degeneração" que, segundo Steiner (especificamente em seus textos sobre Heidegger), vem de longe, sendo enunciada de forma inicial por Spengler e aprimorada pelo Heidegger de Ser e Tempo 
2) A mediação crítica pode muito bem atingir uma potência estética de vasta proporção - e é precisamente isso que Carlo Ginzburg tem a dizer sobre Minima Moralia, de Adorno, e sobre Os Reis Taumaturgos, de Marc Bloch, por exemplo. No entanto, uma obra-prima crítica é, no fim das contas, tão (ou mais) rara quanto uma obra-prima no campo da criação literária, e é precisamente a divisão entre os campos (crítica, criação) e a possibilidade de valoração (obra-prima, apenas-mais-uma) que está e estará sempre em jogo em qualquer comentário.  
3) Talvez seja historicamente impossível voltar atrás, em direção a uma fruição pura e simples do texto literário, da obra de arte - seria uma espécie de anacronismo ingênuo, e não o anacronismo deliberado e produtivo de Borges e Warburg, por exemplo, que anacronizam o presente tornando-o contemporâneo de fragmentos esparsos do arcaico. De resto, aquilo que há de mais instigante na literatura contemporânea (aquilo que, paradoxalmente, melhor nutre o gozo da leitura, a "eucaristia" da leitura) envolve justamente o corte oblíquo de temporalidades e uma tendência à montagem anárquica das referências (Parmênides, de César Aira, e HHhH, de Laurent Binet).

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A eucaristia da leitura

 1) Diante do texto literário, duas formas de prosseguir (grosso modo): a) reivindicar um estranhamento absoluto diante da linguagem, questionando continuamente toda e qualquer construção de sentido - como faz Wittgenstein. b) tomar a leitura em um viés "metafísico" (místico, "religioso" no sentido de conexão com o Self Grande, ritualístico, "tradicional" no sentido de conexão com um arcabouço arcaico de experiências), a leitura como experiência fundadora da personalidade e do reconhecimento de si - um arco amplo que pode levar de Nietzsche a Harold Bloom.
2) No primeiro percurso, está a aridez da crítica minuciosa, a aridez de uma luz artificial constante e direta sobre o texto, sobre uma parte muito específica de um texto literário (como um parágrafo de Paul de Man, que é já a aridez da aridez da aridez). A aridez da aridez da aridez: a palavra é des-naturalizada, desviada do uso corrente - passa a ser referente crítico, possibilidade de questionamento das regras de conduta no interior da linguagem (como em Thomas Bernhard, Gertrude Stein, Beckett).
3) Alguns momentos da trajetória crítica de George Steiner - por mais paradoxal que isso possa parecer - apresentam uma aberta rejeição aos "comentários": a atividade interpretativa é frequentemente exagerada (um ruído, uma obstrução entre o leitor e a literatura). Steiner é um conservador, à moda de Auerbach: acredita (promove e exalta) na solidez das categorias, nos compartimentos hermenêuticos forjados pelo tempo - ao mesmo tempo em que, de novo de forma paradoxal, levanta a possibilidade da emergência de capacidades cognitivas quase a-históricas, cujo acesso seria dado no momento em que o leitor se debruça sobre o texto "original".

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Múltiplo pertencimento

1) Edward Said sempre insistiu no múltiplo pertencimento como signo distintivo - aquilo que lhe permitia circular por variadas tradições, línguas e geografias, mas que também lhe oferecia boa dose de angústia, tensão e dissenso. É por esse critério que Said também organiza suas leituras: as primeiras produções teóricas em torno de Conrad (a troca de idiomas, a movimentação entre Oriente e Ocidente), a fidelidade inexorável com relação aos exilados Lukács, Auerbach e Adorno.
2) Variados são os caminhos que levam à emergência do múltiplo pertencimento como signo distintivo: a profissionalização do discurso etnográfico anterior à I Guerra Mundial, a transfiguração inaudita que esse mesmo discurso sofreu no entre-guerras e, finalmente, a dispersão forçada e maciça dos corpos no pós-II Guerra. É essa dispersão - que tanta ênfase vai dando, progressivamente, ao múltiplo pertencimento - que engendra as brilhantes ficções de Beckett, Nabokov ou Danilo Kis.
3) Na face complexa do contemporâneo, no entanto, o múltiplo pertencimento é uma vertente. Grandes escritores em atividade são insistentes em suas restrições de campo, temática e geografia - basta pensar em Cormac McCarthy, Paul Auster ou Philip Roth (todos incrivelmente distantes da fragmentação ontológica radical das ficções de Charles Simic, Bellatin ou Gonçalo Tavares). Não se trata de saber qual vertente é a melhor e sim de perguntar que procedimento de escrita faz ver, denuncia, atualiza ou traduz, seja o deslocamento, seja a suspensão.  

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A centralidade sem centro de Lévi-Strauss


1) Com a distância histórica, o crítico se diverte na movimentação das peças, alterando precursores, traçando linhas de reciprocidade baseadas na analogia, construindo pontos de contato e estabelecendo tramas dialógicas. É o que faz Agamben, por exemplo, com relação a Lévi-Strauss - Lévi-Strauss como uma espécie de aleph do pensamento do século XX. A Claude Lévi-Strauss em respeitosa homenagem pelo seu septuagésimo aniversário, escreve Agamben no início de um dos capítulos de Infância e história.
2) A sugestão de uma centralidade sem centro de Lévi-Strauss para o pensamento do século XX pode ser levada adiante. Como aponta o próprio L-S, boa parte de seu trabalho é derivado dos problemas levantados por Saussure - o que força o recuo até a primeira década do século. Na década seguinte, temos a arte como procedimento de Chklóvski, primeiro esboço de um pensamento estético articulado estruturalmente - que será exaustivamente levado adiante por Propp em seu Morfologia do conto maravilhoso. Toda esse percurso é questionado, revisto e virado do avesso por Lévi-Strauss em 1960, quando ele publica um longo ensaio sobre os estudos de Propp (que gerou uma réplica, que gerou uma tréplica...).
3) Em entrevista recente, Roberto Calasso declarou que Lévi-Strauss temia a noção de sacrifício, pois ela ameaçava a solidez de seu sistema de pensamento - e, em seguida, Calasso fala de Bataille e de sua visão completamente diversa da dinâmica do ritual e do sacrifício (o que levaria a uma releitura conjunta de L-S e Bataille tendo justamente essa cisão como horizonte). Releitura que, até certo ponto, foi feita por Derrida já em 1967 na Gramatologia - dedicada, em grande medida, a descentralizar a centralidade de Lévi-Strauss no "inconsciente epistemológico" da época.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Ainda diante do mar

1) Em seu A guerra das imagens, Serge Gruzinski fala, entre muitas outras coisas, da engrenagem representacional posta em movimento pelos "descobridores" do Novo Mundo - descrições, desenhos, pinturas, relatos, comparações, analogias. Se Gruzinski fica mais restrito a Cortés e a região mexicana, Todorov, por outro lado, em A conquista da América, nota que semelhante engrenagem era compartilhada pelos vários "conquistadores": franceses, espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses.
2) Era prática corrente de todos eles - franceses, espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses - a captura dos nativos e o envio para a Europa. Mas o cenário é bem mais complicado que isso, porque o corpo do nativo servia como garantia dos relatos que chegavam antes - e, uma vez em sociedade, o nativo devia ser naturalizado, absorvido.  
3) Daí as múltiplas possibilidades da engrenagem representacional: o nativo exposto para a corte, com suas roupas típicas (no caso dos esquimós, por exemplo), seus utensílios, sua canoa, suas pinturas e sua nudez. Em seguida, retratos de corpo inteiro, retratos só do rosto e, finalmente, retratos com trajes da "civilização". Como coloca Didi-Huberman, o que vemos, o que nos olha: quão tortuoso é um percurso representacional que veste o Outro com as roupas do Mesmo e o coloca exposto? Um teatro, um embuste, uma moeda falsa.    

sábado, 15 de dezembro de 2012

Diante do mar

1) As primeiras páginas de O que vemos, o que nos olha, de Georges Didi-Huberman: uma teoria da imagem inaugurada a partir de uma citação literária, um trecho do Ulisses de Joyce. Stephen Dedalus olha o mar e o mar lhe devolve a lembrança da mãe moribunda - como se tivesse sido preciso fechar os olhos de sua mãe para que sua mãe começasse a olhá-lo verdadeiramente, escreve Didi-Huberman.
2) Stephen Dedalus diante do mar - e diante do mar não se pode confiar nos sentidos (a cor da água se transforma, os sons perdem a profundidade). Homero cego diante do mar, contando o bater das ondas, calculando a maré. A frota de Agamenon e todos os signos que o mar leva àquele que sabe ver: pedaços de madeira, vegetação - a terra firme está próxima.
3) O gesto de Didi-Huberman é análogo ao de Foucault, só que invertido: a teoria da linguagem em As palavras e as coisas é inaugurada a partir de uma imagem, As meninas de Velázquez. Sem que haja qualquer imagem em Joyce, Didi-Huberman retira de suas palavras (da cena que cria, do gesto de fazer o mar invadir a cognição de Dedalus) uma série de intuições que criam problemas no interior da história da arte - e Foucault, por sua vez, é o primeiro a reconhecer uma sintaxe na imagem de Velázquez.   

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Drama e memória

1) Fernando Pessoa, depois de se definir como o "Supra-Camões", colocou em prática, com a dinâmica dos heterônimos, uma encarnação de Shakespeare. Pessoa coloca em cena uma série de vozes que são, simultaneamente, independentes e entrecruzadas - e essa cena é o próprio espaço poético cheio de camadas criado por Pessoa (é por isso que José Augusto Seabra o chama de poetodrama). Sendo todos e sendo ninguém, Pessoa arma um teatro do próprio e do alheio, impossível de sintetizar ou de abordar estruturalmente - pois já não possui centro.  
2) Para Harold Bloom, Shakespeare "inventa o humano" porque tem dentro de si todas as reações, todos os sentimentos, tipos, afetos e possibilidades já pensados e jamais pensados - antes de chegar ao palco, o mundo se forma dentro da mente inabarcável de Shakespeare, sem interrupção e sem tempo. É o problema da memória de Shakespeare como a memória da tradição. Pessoa, com a dinâmica dos heterônimos, miniaturiza o processo, como se estivesse em um laboratório (o que Pessoa faz na poesia, Pirandello está fazendo no teatro).  
3) Como em Shakespeare, Pessoa dispersa os pertencimentos possíveis dos heterônimos. É impossível determinar fronteiras: as vozes são feitas de fragmentos de neopaganismo clássico, estoicismo, simbolismo francês, Sebastianismo, Whitman e Poe, ocultismo, futurismo, e muito mais. Vila-Matas exercita uma atualização dessa dramaticidade em O mal de Montano, quando monta os fragmentos de diários de escritores no ir e vir de uma narrativa que está sempre desmentindo seus pressupostos. Gonçalo Tavares esboça um movimento semelhante em sua série "O Bairro" (Senhor Valéry, Senhor Breton...), na qual os Nomes Próprios da Tradição são ressuscitados em um jogo das cadeiras.  

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Vila-Matas e Portugal

1) Ainda está pendente uma arqueologia portuguesa da obra de Vila-Matas (que pode começar com Bartleby e companhia e, em seguida, abarcar também O mal de Montano). Isso porque são os dois lados da doença da literatura: Bartleby está para a falta (o silêncio) assim como Montano está para o excesso (a compulsão grafológica). Fernando Pessoa é a primeira e mais óbvia peça da montagem - já está presente em Vila-Matas desde a História abreviada. Em Bartleby e companhia, contudo, aparece um Pessoa filtrado pela ficção de Antonio Tabucchi, o principal interlocutor de Vila-Matas para "temas portugueses".
2) A primeira aparição portuguesa em Bartleby e companhia é em dose dupla: Miguel Torga e Edmundo de Bettencourt. Dupla complicada, dissidentes da revista Presença (cujo primeiro número é de 1927, exatamente o ano no qual a conjura portátil é dissolvida por Aleister Crowley), revista que levava adiante certo humanismo ideologicamente purificado pessoano. O fragmento 22 de Bartleby e companhia consegue deixar esses aspectos programáticos no subterrâneo (mas presente, sutilmente) ao focar na respeitosa admiração de Torga por Bettencourt.
3) Em seguida, no fragmento 33, retorna Pessoa - agora com o Barão de Teive, seu "heterônimo suicida" (já gastei algumas páginas analisando essa presença pessoana no livro de Vila-Matas). Antes de se matar, segundo Vila-Matas, o barão teria pensado: "somos tímidos com as mulheres, Deus existe mas Cristo não tinha biblioteca, nunca chegamos a nada, mas ao menos alguém inventou a dignidade". Que curiosamente é uma adaptação do verso de Pessoa no poema "Liberdade": Mais que isto / É Jesus Cristo, / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca...  

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Crítica e hipermetropia, 2

1) "Narrar ou descrever?", o ensaio de Lukács, é de 1936 - rigorosamente o mesmo ano de publicação do ensaio de Walter Benjamin sobre Nicolai Leskov, "O narrador" (e também o ano da primeira edição de Auto-de-fé, de Elias Canetti). O ensaio de Benjamin foi publicado na edição de outubro da revista Oriente e Ocidente, editada pelo eslavista Fritz Lieb. O ensaio de Lukács foi publicado em duas partes: novembro e dezembro, números 11 e 12 da revista Internationale Literatur-Deutsche Blätter ("papéis alemães"), editada em Moscou por exilados alemães (o editor-chefe era Johannes R. Becher).
2) Dois ensaios sobre a narração, o narrador e o ato de narrar - todos eles em direto antagonismo com relação às modas literárias da época (Lukács tem como alvo especial o naturalismo de Zola) e íntima ligação com o substrato arcaico da literatura épica. Para Lukács, sua época é o tempo da decadência: "a relação entre o homem e a sociedade, entre o individual e o coletivo, é tão deformada e fetichizada no expressionismo e no futurismo como no naturalismo". 
3) Benjamin toma outro percurso. Não apenas no que diz respeito à avaliação do expressionismo (que Benjamin acolhia com entusiasmo em Döblin e Broch, por exemplo), mas principalmente com relação ao embate entre narração e romance, por exemplo. Benjamin não trabalha na lógica do "ou" - Tolstoi ou Zola -, trabalha na lógica do "e": Flaubert e Leskov, Kafka e Proust... Lukács, mesmo com a "grandeza da experiência soviética" professada em seu ensaio, não tinha espaço para tal abertura.    

domingo, 9 de dezembro de 2012

Crítica e hipermetropia, 1

1) Ainda sobre Lukács e Kundera, descubro um texto que menciona o contato entre os dois: em um trabalho crítico da juventude, Kundera utilizou a Teoria do romance de Lukács para analisar a obra do vanguardista tcheco Vancura. A autora afirma, em seguida, que Lukács nunca mais apareceu nos trabalhos de Kundera - uma vez que o primeiro estava visceralmente ligado à "perigosa doutrina" marxista que, segundo Kundera, é contra o "espírito do romance".
2) Mas o risco não está apenas nas obras do presente vanguardista - há risco também no passado, no Tristram Shandy por exemplo. Lukács, na Teoria do romance, define o Tristram Shandy como "mero reflexo subjetivo de um fragmento de mundo meramente subjetivo, e portanto limitado, estreito e arbitrário" (p. 52). Sobre o tema, é preciso lembrar a ruidosa ausência de Sterne e do Tristram Shandy na Mimesis de Erich Auerbach (mesmo o capítulo sobre o Quixote, outro osso duro de roer da história literária, só foi incluído em 1950, na edição mexicana de Mimesis).
3) Chklóvski, por outro lado, colocou o Tristram Shandy como um dos eixos principais de sua releitura formalista da história literária. A consciência da forma, escreve Chklóvski em seu ensaio sobre o livro de Sterne, obtida graças a sua deformação constitui o próprio conteúdo do romance. Chklóvski (1893-1984) e Lukács (1885-1971), mesmo que contemporâneos em Moscou durante muitos anos (toda a década de 1930), pouco compartilhavam em termos de literatura (até quando liam os mesmos livros).   

sábado, 8 de dezembro de 2012

Crítica e hipermetropia

União Soviética, 1936
1) O que primeiro chama a atenção nos ensaios sobre literatura de Lukács são os pontos de referência escolhidos: Balzac, Tolstoi, Flaubert, Walter Scott, Goethe. Toda incursão de Lukács pelo século XX é feita em tom negativo. Ele escreve, no ensaio "Narrar ou descrever?": "O grau máximo alcançado pelo subjetivismo no romance moderno (Joyce, Dos Passos) coroa uma evolução que leva, de fato, a transformar toda vida íntima do homem numa fixidez estática e material" (Ensaios sobre literatura, 1965, tradução de Giseh Vianna Konder, p. 81).
2) "Narrar ou descrever?" é um texto de 1936, quando Lukács já estava empenhado em uma obstinada defesa dos valores soviéticos (a "riquíssima realidade do socialismo" como ele coloca, no mesmo ensaio, com uma ironia completamente involuntária). Monotonia, desilusão, fatalismo: é somente isso que Lukács vê nas vanguardas e na literatura que lhe era contemporânea - sua veemente recusa de Kafka e Thomas Mann é proverbial (ainda que tenha mudado um pouco de ideia quanto ao último com o passar dos anos).
3) Imediatamente liguei o campo referencial de Lukács àquele de Milan Kundera - são rigorosamente os mesmos autores, com a diferença que Kundera incorpora ainda Cervantes, Sterne e Stendhal. Mas se Lukács só tem olhos para o que está distante - e não aceita aquilo que lhe está presente -, Kundera, por outro lado, reconhece não apenas em Kafka, mas em Joyce e Hermann Broch, o clímax de procedimentos utilizados por aqueles escritores do passado - os mesmos lidos por Lukács (diante desse descompasso, poderíamos dizer que já não são mais os mesmos lidos por Lukács).

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Exame de si

1) Mais de dois anos atrás, a partir da leitura da biografia escrita por Didier Eribon, cortei e montei alguns fragmentos da vida de Michel Foucault, procurando um fio narrativo feito de pontos em suspensão. Mas foi em uma entrevista bastante despretensiosa que encontrei, através das palavras do próprio Foucault, uma cena inaugural muito poderosa (que está ausente da biografia). 
2) A entrevista foi feita por um fotógrafo americano (J. Bauer) em algum ponto de 1976, 1977. No ano seguinte, sai uma tradução ao italiano na revista Playmen - que foi, curiosamente, a versão italiana da Playboy. A nota explicativa da edição dos Ditos e escritos de Foucault diz que a entrevista foi "filtrada por duas traduções", o que não deixa muito claro o cenário, que talvez tenha sido o seguinte: Foucault conversou em francês com Bauer, que traduziu ao inglês (não se sabe onde foi publicada originalmente), e os editores de Playmen traduziram ao italiano a versão em inglês - até que, finalmente, tudo isso foi levado de volta ao francês quando começaram a organizar os textos esparsos de Foucault para a edição original dos Ditos e escritos (1994).
3) Como se a coisa já não estivesse suficientemente confusa, eu cito a tradução ao português: Bauer pergunta a Foucault: seus interesses sempre foram filosóficos?, e ele responde:
Tal como meu pai, me orientei para a medicina. Pensava em me especializar em psiquiatria e, assim, trabalhei três anos no Hospital Sainte-Anne de Paris. Eu tinha 25 anos, era extremamente entusiasta, idealista, por assim dizer, dotado de um bom cérebro e de um monte de ideias importantes. Mesmo naquela época! Foi então que entrei em contato com alguém, que chamarei Roger, um interno de 22 anos. Ele havia sido enviado para o hospital porque seus pais e amigos temiam que ele se fizesse mal e acabasse se autodestruindo, quando de uma de suas frequentes crises de angústia violenta. Nós nos tornamos bons amigos. Eu o via várias vezes ao dia durante minhas visitas ao hospital, e ele começou a simpatizar comigo. Quando ele estava lúcido e não tinha problemas, ele parecia muito inteligente e sensato, mas, em alguns outros momentos, sobretudo os mais violentos, devia ficar enclausurado. Ele era tratado com medicamentos, mas esta terapia se mostrou insuficiente. Um dia, me disse que sabia que nunca o deixariam partir do hospital. Esse terrível pressentimento provocava um estado de terror que, por sua vez, gerava angústia. A ideia de que podia morrer o inquietava muito, e ele até pediu um certificado médico que atestaria que nunca se iria deixá-lo morrer. É claro que esta súplica foi considerada ridícula. Seu estado mental deteriorou e, afinal, os médicos concluíram que, se não se interviesse, fosse de que modo fosse, ele se mataria. Assim, com o consentimento de sua família se procedeu a uma lobotomia frontal nesse rapaz excepcional, inteligente, mas incontrolável... Embora o tempo passe, não importa o que eu faça, não consigo esquecer seu rosto atormentado. Com frequencia eu me perguntei se a morte não seria preferível a uma não-existência, e se não deveriam nos conceder a possibilidade de fazer o que quisermos de nossa vida, seja qual for nosso estado mental. Para mim, a conclusão evidente é que mesmo a pior dor é preferível a uma existência vegetativa, já que o espírito tem realmente a capacidade de criar e embelezar ainda que partindo da existência mais desastrosa. Das cinzas surgirá sempre um fênix...
"Conversação sem complexos com um filósofo que analisa as 'estruturas do poder'". Ditos e escritos, vol. IV: estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Ribeiro. Forense, 2006, p. 308-309.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Ignorância perfeita, 1

Naquela célebre conversa que Enrique Vila-Matas teve com Juan Villoro, em 19 de dezembro de 2006, no Restaurante Bauma, em Barcelona, eles conversam sobre Shakespeare. Villoro pergunta algo como: por que você utiliza citações de outros autores como se fossem criações suas? E Vila-Matas fala de Shakespeare, da memória de Shakespeare, da nossa memória como a memória de Shakespeare, e finaliza dizendo: 
Que sou um falso erudito digo há tempos, explicando que muitas citações são inventadas. E que se as invento, e isso também inventei como desculpa, é porque não me atrevo a dizer que é minha uma frase e penso que se digo que é de Shakespeare, funciona melhor - e no fim as pessoas gostam da frase. E se é ruim, como é de Shakespeare, comigo não acontece nada.
Mas e se a frase de Shakespeare já estivesse adulterada desde o início? Vila-Matas não é um erudito, mas Robert Darnton certamente o é e, em um texto sobre o ofício da bibliografia ("A importância de ser bibliográfico", em A questão dos livros), menciona o inesquecível "Tipógrafo B", "um trabalhador particularmente negligente" que "ao encontrar uma frase que considerava deficiente, ele a 'melhorava'". Trata-se de uma versão de 1619 de O mercador de Veneza - e Darnton afirma que essa versão "é puro tipógrafo B", e o "texto da peça como um todo (que tem em média um erro significativo a cada 23 falas) é um Shakespeare muito contaminado".
um Shakespeare muito contaminado

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Ignorância perfeita

1) "Minha ignorância do grego é tão perfeita quanto a de Shakespeare", escreve Borges no verbete "Epidauro" de seu Atlas. Para Borges, Shakespeare é uma espécie de manancial inesgotável, um arquivo sem fundo, uma máquina eterna que dissemina virtudes - mesmo a ignorância, parente da sombra, se tem sua origem em Shakespeare é imediatamente transformada em luz e perfeição.
2) No conto "A memória de Shakespeare", basta uma frase para indicar a perfeição que é ser Shakespeare - com uma única frase, escutada em uma conversa telefônica, o arquivo-shakespeare se abre em toda sua impossibilidade mágica, seu hermetismo sobre-humano. Shakespeare só pode ter criado o humano, como quer Harold Bloom, porque, como quer Borges, ele é mais que humano (porque agora é pura linguagem, pura metafísica).
3) Há uma ambivalência curiosa de Borges com relação à memória: se a memória de Funes é abarrotada, totalitária, infatigável e, finalmente, abertamente trágica em sua dimensão tediosa, a memória de Shakespeare é aberta, fluida e luminosa. O narrador do conto tenta obliterar a memória de Shakespeare em sua mente e fracassa: esse e outros caminhos foram inúteis: todos me levavam a Shakespeare, escreve Borges. Funes precisa do mundo para conhecer os limites de sua memória; o mundo precisa de Shakespeare para memorizar os limites do conhecimento.   

sábado, 1 de dezembro de 2012

"A influência má dos signos do zodíaco"

Hans Burgkmair, ilustração para O Rei Branco (c. 1512)
A astrologia não consistiu apenas, nem predominantemente, numa visão "física" do Universo: nasceu no terreno de uma mistura híbrida de "religião" e de "ciência", de uma total "humanização" do cosmos, de uma extensão a todo o universo dos comportamentos e das emoções do homem. Para a visão que a astrologia tem do mundo, as estrelas não são apenas "corpos" movidos por "forças", mas seres animados e vivos, dotados de sexo e de caráter, capazes de risos e de lágrimas, de ódio e de amor. Os nomes dos planetas não são meros "signos"; as "figuras" não são símbolos convencionalmente aceitos: têm poder evocativo, seduzem e aprisionam a mente, "representam" o objeto no sentido pleno da palavra, isto é, tornam real sua presença, revelam as qualidades essenciais dos seres que se identificam com as estrelas e nelas se incorporam.
Paolo Rossi. A ciência e a filosofia dos modernos. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 36.
*
Tempos atrás, comentando um texto de Gyula Krúdy, chamei a atenção para o papel da Lua na narrativa - uma Lua com a "face cadavérica", que olha a cidade através da nevasca, atenta ao coração perverso dos homens. A Lua é recorrente nas histórias de Krúdy ("as pobres mulheres não sabiam que depois de nove ciclos lunares trariam ao mundo basiliscos terríveis ou gêmeos?"), e agora, pensando nisso a partir do trecho de Rossi, lembro do formidável romance de Andrzej Kusniewicz, O rei das duas Sicílias, cuja ação, a Primeira Guerra Mundial, gira em torno do corpo inerte de uma cigana morta. O assassino jamais é descoberto, a cena sempre retorna na narrativa e está sempre encoberta, pois a luz da Lua é suficiente apenas para entrever o gesto do estrangulamento, sem revelar qualquer feição. 
(Consta que Hitler organizou as principais movimentações alemãs durante a Segunda Guerra Mundial contando com o auxílio direto do astrólogo Karl Ernst Krafft)