quarta-feira, 21 de maio de 2014

Vanishing Point, 2

Rogier van der Weyden, "Retrato de Francesco d'Este", 1460
Em Markson, o escritor encontra seu vanishing point ao se transformar ou ao se consolidar como leitor, e vice-versa. Talvez esse vanishing point, tão característico da poética de Markson, seja esse momento de suspensão impossível, essa aporia, em que a escritura se mostra como uma forma parasitária da leitura - mas a leitura só se torna presente, só pode ser percebida, apreendida, através da escritura. O cobertor é muito curto, e Markson passa frio a noite toda.
No painting by Rogier van der Weyden is signed.
No painting by Hugo van der Goes is signed. (p. 77)
De novo e sempre essa tematização, esse resgate do vanishing point, do ponto de desaparecimento de qualquer reivindicação pela posse do texto - a assinatura, a presença. Embora, por outro lado, seja precisamente a dimensão do nome (e, portanto, da posse) que permite o jogo de Markson, seu jogo de referências e de justaposição - se a escritura é também leitura, o desmoronamento da posse (a falta de assinatura, por exemplo) é também e simultaneamente sua celebração (os incontáveis nomes próprios célebres que Markson elenca).

domingo, 18 de maio de 2014

Vanishing Point, 1

Quando se vai chegando ao final do livro, fica claro que o vanishing point é esse momento de desaparição da autoria no caos da leitura, no caos das referências, mas uma desaparição metafórica que se confunde com a desaparição material do escritor, do Autor - que é o termo que Markson utiliza ao longo do livro ao se referir a si mesmo (como usa Reader em Reader's Block, por exemplo; ou Writer em This is not a novel). Em alguns momentos ao longo do livro essa desaparição é ensaiada já na incorporação de fragmentos alheios, apresentados sem a mediação da voz do Autor, como no verso de Mallarmé, que permanece anônimo:
La chair est triste, hélas! et j'ai lu tous les livres. (p. 114)
Há muito a dizer sobre a emergência desse tema blanchotiano na poética de Markson, o tema do desaparecimento - como faremos para desaparecer?, de O livro por vir, que Vila-Matas usa como epígrafe de O mal de Montano (que funciona como uma espécie de etapa anterior ao gesto de "exaustão autoral" de Markson em sua quadrilogia). Porque, de certo modo, o vanishing point é precisamente a tradução tanto desse como faremos para desaparecer? como desse livro por vir, que se anuncia quando Foucault pergunta, através da presença velada de Beckett, o que importa quem fala?.  

terça-feira, 13 de maio de 2014

Vanishing Point

David Markson, 2007
Dentre os pouquíssimos - raríssimos - escritores contemporâneos que David Markson cita em Vanishing Point está Cormac McCarthy. Ou seja, escritores ainda vivos, atuantes no momento em que Markson escreve (a primeira edição de Vanishing Point é de 2004). Além disso, McCarthy atua no mesmo campo de Markson, no mesmo horizonte de recepção, a literatura norte-americana. E McCarthy surge no livro de Markson sob um viés negativo (como outrora também apareceu Harold Bloom), sob talvez o pior viés possível para Markson, que é o viés do mau leitor. Escreve Markson: I don't understand them. To me that's not literature. Said Cormac McCarthy of Henry James and Marcel Proust. (Vanishing Point. Shoemaker & Hoard, 2004, p. 86). Parece que de fato McCarthy disse algo parecido em uma entrevista ao The New York Times. E como é hábito em Markson, tudo gira em torno da leitura, da absorção da literatura e do mundo (como no caso de Bloom, que se tratava de uma anedota a respeito da quantidade de páginas que o crítico conseguia ler por hora).  

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Figuras do trânsito

1) Edward Said (Estilo tardio) e Roberto Calasso (Os 49 degraus) concordam na admiração diante de Minima moralia, de Adorno, e concordam também em apontar o deslocamento geográfico e o choque cultural como principais motores criativos do livro (como escreve Calasso, é desse momento de vulnerabilidade de Adorno diante do desconhecido que surge a resistência criativa). Se fosse possível delimitar, a partir da experiência de Adorno, um período de tempo que representasse esse confronto entre vulnerabilidade e resistência, esse período poderia ser 1945-1960.   
2) No desarranjo do pós-guerra, certas obras aparecem como tentativas de configurar esteticamente esse cenário de confronto entre vulnerabilidade e resistência. Não apenas o trabalho de Adorno a partir do fragmento, da dissolução e do exílio, distante da Europa, mas também o trabalho de tradução de Roger Caillois, na França, de volta à Europa, portanto, quando em 1951 edita Borges na Gallimard (uma inversão notável e significativa, pois Adorno está diante de uma geografia nova aferrado a uma imagem arcaica - sua Europa e sua cultura - enquanto Caillois retorna ao arcaico e sobre ele deposita essa geografia ficcional estranha - não por acaso o nome da coleção é La Croix du Sud). Pois 1951 é também o ano da primeira edição de Minima moralia.
3) O período é crítico também para a recepção e assimilação de Nietzsche - como aponta brevemente Calasso no ensaio sobre Adorno e extensamente Vattimo em seu livro sobre Nietzsche -, comprometido que estava pela apropriação nazi-fascista (o que se desdobra, seja por Nietzsche, seja por Hitler, na questão da assimilação de Heidegger, como aponta o próprio Vattimo). É o período do revide e do revisionismo (como na França pós-Pétain), mas também da procura de novas bases para o desenvolvimento das técnicas e das ideias - a tradução dos escritores norte-americanos pelos italianos, Italo Calvino, Cesare Pavese, Elio Vittorini, entre outros; ou mesmo a insistência/resistência criativa de Truffaut com o cinema hollywoodiano dos anos 1950 (Hitchcock, Hawks, Huston, Ford - e essas duas pontas talvez sejam unidas pela figura de Jean-Pierre Melville, que escolheu seu sobrenome (escolheu o pai, a linhagem) na tradição literária estadunidense).       

terça-feira, 15 de abril de 2014

A sereia Adorno

O ensaio de Roberto Calasso sobre Adorno (comentado aqui) chama-se "A sereia Adorno", e trata, em rápidas pinceladas, de três tópicos interligados: 1) o exílio nos Estados Unidos; 2) a produção de Minima Moralia; e 3) a recepção e tradução desse livro na Itália. Calasso há muitos anos se preocupa em transmitir a ideia do trabalho de edição como um trabalho artístico (como já foi apontado em sua relação com Bruce Chatwin), e, no percurso, evidencia uma série de detalhes muito preciosos (como aqueles que envolvem a divulgação do trabalho de Salvatore Satta). A argumentação de Calasso no ensaio sobre Adorno lembra aquela de Gianni Vattimo sobre Nietzsche (que comentou sobre a "escola da suspeita"), em que rastreia as edições do filósofo na Itália ("O Nietzsche italiano", Vattimo, Diálogo com Nietzsche, ensaios 1961-2000, tradução de Silvana Leite, WMF Martins Fontes, 2010, p. 339-349), ressaltando a edição crítica de Colli e Montinari publicada a partir de 1964. Calasso fala de Minima Moralia como "um livro contagioso", "um livro-sereia", cujo canto requer "ouvidos receptivos". Caso contrário, escreve Calasso, "acabaremos por julgá-lo como o eminente historiador Delio Cantimori, o qual assim sentenciou para Giulio Einaudi, que lhe pedira um parecer editorial sobre o livro: 'É o produto tardio daquela literatura de máximas e considerações sociopsicofilosóficas que andavam muito em voga no período weimariano'". Para Calasso, a recusa de Cantimori diante de Adorno repercute sua recusa diante de Nietzsche: "o cauteloso Cantimori aconselhava até não manter os livros de Nietzsche ao alcance da mão na própria biblioteca". E completa: "nas considerações pedagógicas sobre Nietzsche, como naquele já remoto parecer editorial sobre Minima Moralia, creio que Cantimori representasse algo de muito sórdido, que continuamos a encontrar todos os dias: um certo aspecto policial da mais iluminada cultura italiana" (Roberto Calasso, Os 49 degraus, tradução de Nilson Moulin, Cia das Letras, 1997, p. 127).   
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Um produtivo paralelo se anuncia nesse comentário de Calasso sobre "certo aspecto policial da mais iluminada cultura italiana", um paralelo que talvez tenha uma face mais evidente naquela reflexão de Bolaño sobre Carlos Wieder, ou seja, de que a sensibilidade artística não seria um impedimento para a violência, mas uma espécie de pré-requisito, mas que está também no livro de Alan Pauls sobre Borges, El factor Borges. Pois são esses os termos que Pauls resgata de Ramón Doll, o crítico literário argentino que refutou Borges por conta de seus excessivos empréstimos, alguém que "fala mal aquilo que outros já falaram antes e muito melhor" (Pauls resgata precisamente essa função policialesca de controle que Doll reclamava para si, como um guarda de fronteira). 

terça-feira, 8 de abril de 2014

Rachel Bespaloff

1) Dias atrás, comentei aqui a menção que Edward Said faz a Hermann Broch em seu livro Estilo tardio. Said resgata um comentário de Broch sobre a Ilíada de Homero - na realidade, trecho de um ensaio que Broch preparou como prefácio ao livro de Rachel Bespaloff, On the Iliad: A Study of Homer's Interpretation of Man in War and in Peace (1947). A novidade é que o ensaio de Broch agora está disponível em português, com tradução de Marcelo Backes, incluído na coletânea Espírito e espírito de época (São Paulo: Benvirá, 2014).  
2) Rachel Bespaloff nasceu em uma família de judeus ucranianos, em 1895, e foi criada em Genebra. Começou na música e em seguida foi para a filosofia - está entre os primeiros responsáveis pela recepção das ideias de Heidegger, ainda na década de 1930, período em que escreveu ensaios sobre Kierkegaard e André Malraux, entre outros. Em 1942, fugindo da guerra, saiu da França e foi para os Estados Unidos - trabalhou como tradutora e datilógrafa para o governo, foi professora de francês, até cometer suicídio em 1949 (consta que deixou uma nota de despedida: muito cansada para prosseguir).
3) Uma série de pontos liga Bespaloff a Adorno (que é, de resto, o nome teórico - sobretudo enquanto autor de Minima moralia - por trás da argumentação de Said em Estilo tardio, de onde saíram Broch e Bespaloff), desde a leitura de Kierkegaard nos anos de formação até o exílio nos Estados Unidos. Mesmo a decisão pelo suicídio. Roberto Calasso, em ensaio sobre Adorno, escreve: "América, 1944: lugar de alucinações fáceis, sobretudo para os intelectuais refugiados de língua alemã, juntos expostos ao primeiro e brutal contato com a sociedade industrial pura". Naquele período, continua Calasso, "em grande quantidade, houve suicídios e desoladas solidões em apartamentos minúsculos de Nova York ou de Los Angeles. Muitos não resistiram, tornaram-se fantasmas patéticos da velha Europa, restos de uma cultura que ninguém mais tinha vontade de usar". E então surge Adorno: "Daquela condição humilhante, Adorno soube tirar material precioso para seu maior livro: Minima moralia. E seu momento de máxima força criativa coincide com a situação de máxima vulnerabilidade" (Os 49 degraus, tradução de Nilson Moulin, Cia das Letras, 1997, p. 125).

quinta-feira, 3 de abril de 2014

À sombra das luzes

Jean-Pierre Melville, L'Armée des ombres
1) Um ponto decisivo da poética de Goya que Todorov faz questão de frisar em seu livro (Goya à sombra das luzes) é aquele que diz respeito à mescla de posições entre vítimas e carrascos. O contexto específico é aquele da invasão de Napoleão à Espanha - a brutalidade dos soldados franceses se mistura à crueldade dos espanhóis em seus desejos de desforra, e é esse amálgama perverso (essa "zona cinza", para falar com Primo Levi e com o Agamben de O que resta de Auschwitz) que Goya captura em seus desenhos e gravuras (sobretudo em Los desastres de la guerra).
2) Mais de cem anos depois, é a vez da França ser ocupada - o cenário muda, mas a zona cinzenta ressurge. No caso da ocupação nazista durante a II Guerra Mundial, parece surgir uma estrutura tríplice (nazistas, resistentes e colaboracionistas) ao invés daquela dupla de Goya (franceses e espanhóis). O documentário de Marcel Ophuls, Le chagrin et la pitié, rodado em 1969, é preciso em captar esse momento em que a resistência se torna o corpo social majoritário, dando início à desforra em larga escala (no mesmo ano, Jean-Pierre Melville lança L'Armée des ombres, um filme sobre a resistência francesa que mostra como a zona cinzenta - já presente, de resto, nas sombras do título - já está em operação no próprio cerne do movimento - como mostra a cena de execução do traidor).
3) Ao escrever sobre a origem do Estado, Coetzee também fala de um filme, Os sete samurais: "trata do nascimento do Estado, e o faz com clareza e abrangência shakespearianas"; "é a teoria de Kurosawa para a origem do Estado" - samurais que salvam uma aldeia do recorrente e sistemático abuso por parte de um grupo de bandidos. Um modelo de governo que morre e dá lugar a outro. "Podem-se citar exemplos de nascimento ou renascimento do Estado também na Europa", continua Coetzee. "No vácuo de poder deixado pela derrota dos exércitos do Terceiro Reich em 1944-45, gangues armadas rivais lutaram para se encarregar das nações recém-libertadas". E Coetzee finaliza:
Será que alguém, em 1944, disse ao populacho francês: Pensem: a retirada dos nossos dominadores alemães significa que por um breve momento não somos governados por ninguém. Queremos terminar esse momento, ou queremos talvez perpetuá-lo - tornamo-nos o primeiro povo dos tempos modernos a reduzir o Estado? Vamos, nós, enquanto povo francês, usar nossa nova e súbita liberdade para debater a questão sem limitações. Talvez algum poeta tenha pronunciado essas palavras: mas, se o fez, sua voz deve ter sido imediatamente silenciada pelas gangues armadas, que nesse caso e em todos os casos têm mais em comum umas com as outras do que com o povo. (Diário de um ano ruim, tradução de José Rubens Siqueira. Cia das Letras, 2008, p. 11-14).
Há um eco adorniano nessa voz do poeta que é silenciada pelas gangues armadas - uma expressão que não faz menos que evocar precisamente esse armée das sombras de Melville e da Resistência, as gangues armadas rivais que, evocando a zona cinzenta que nos persegue desde Goya, Coetzee define como tendo mais em comum umas com as outras (esse ponto radical em que nazista e resistente se tocam) do que com o povo.