quinta-feira, 3 de abril de 2014

À sombra das luzes

Jean-Pierre Melville, L'Armée des ombres
1) Um ponto decisivo da poética de Goya que Todorov faz questão de frisar em seu livro (Goya à sombra das luzes) é aquele que diz respeito à mescla de posições entre vítimas e carrascos. O contexto específico é aquele da invasão de Napoleão à Espanha - a brutalidade dos soldados franceses se mistura à crueldade dos espanhóis em seus desejos de desforra, e é esse amálgama perverso (essa "zona cinza", para falar com Primo Levi e com o Agamben de O que resta de Auschwitz) que Goya captura em seus desenhos e gravuras (sobretudo em Los desastres de la guerra).
2) Mais de cem anos depois, é a vez da França ser ocupada - o cenário muda, mas a zona cinzenta ressurge. No caso da ocupação nazista durante a II Guerra Mundial, parece surgir uma estrutura tríplice (nazistas, resistentes e colaboracionistas) ao invés daquela dupla de Goya (franceses e espanhóis). O documentário de Marcel Ophuls, Le chagrin et la pitié, rodado em 1969, é preciso em captar esse momento em que a resistência se torna o corpo social majoritário, dando início à desforra em larga escala (no mesmo ano, Jean-Pierre Melville lança L'Armée des ombres, um filme sobre a resistência francesa que mostra como a zona cinzenta - já presente, de resto, nas sombras do título - já está em operação no próprio cerne do movimento - como mostra a cena de execução do traidor).
3) Ao escrever sobre a origem do Estado, Coetzee também fala de um filme, Os sete samurais: "trata do nascimento do Estado, e o faz com clareza e abrangência shakespearianas"; "é a teoria de Kurosawa para a origem do Estado" - samurais que salvam uma aldeia do recorrente e sistemático abuso por parte de um grupo de bandidos. Um modelo de governo que morre e dá lugar a outro. "Podem-se citar exemplos de nascimento ou renascimento do Estado também na Europa", continua Coetzee. "No vácuo de poder deixado pela derrota dos exércitos do Terceiro Reich em 1944-45, gangues armadas rivais lutaram para se encarregar das nações recém-libertadas". E Coetzee finaliza:
Será que alguém, em 1944, disse ao populacho francês: Pensem: a retirada dos nossos dominadores alemães significa que por um breve momento não somos governados por ninguém. Queremos terminar esse momento, ou queremos talvez perpetuá-lo - tornamo-nos o primeiro povo dos tempos modernos a reduzir o Estado? Vamos, nós, enquanto povo francês, usar nossa nova e súbita liberdade para debater a questão sem limitações. Talvez algum poeta tenha pronunciado essas palavras: mas, se o fez, sua voz deve ter sido imediatamente silenciada pelas gangues armadas, que nesse caso e em todos os casos têm mais em comum umas com as outras do que com o povo. (Diário de um ano ruim, tradução de José Rubens Siqueira. Cia das Letras, 2008, p. 11-14).
Há um eco adorniano nessa voz do poeta que é silenciada pelas gangues armadas - uma expressão que não faz menos que evocar precisamente esse armée das sombras de Melville e da Resistência, as gangues armadas rivais que, evocando a zona cinzenta que nos persegue desde Goya, Coetzee define como tendo mais em comum umas com as outras (esse ponto radical em que nazista e resistente se tocam) do que com o povo.  

2 comentários:

  1. Falcão,

    As relações humanas na ausência de um Estado são um tema profícuo na literatura. Penso, por exemplo, em "O Senhor das Moscas" de William Golding e "Ensaio sobre a Cegueira" de Saramago, livros que levam a extremos perturbadores essa questão.

    Abraços,
    George

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