quinta-feira, 3 de junho de 2021

Universo, papel


1) Quando escreve a História abreviada da literatura portátil, Vila-Matas escolhe uma epígrafe de Paul Valéry, de Monsieur Teste: "O infinito é uma questão de escrita. O universo só existe no papel" (é curioso pensar nessa frase em uma novela da década de 1980, evocando a frase de Derrida na Gramatologia, "il n'y a pas de hors-texte", que por sua vez já evocava indiretamente Valéry). Com a epígrafe, Vila-Matas prepara o terreno para a reconfiguração jocosa que irá propor da história da literatura e da arte no século XX - já que o universo "só existe no papel", é possível propor a conjura portátil como algo que simultaneamente acontece e não acontece (Crowley, Duchamp, Picabia, Walser...).

2) O jogo de escalas que Duchamp propõe na caixa-maleta serve de mote para Vila-Matas propor a conjura portátil, mostrando que no fim das contas o "fora do texto" também existe (ou seja, diz respeito à movimentação dos corpos no espaço, nas ruas, nos cafés, nos locais secretos - é fundamental fazer uma obra portátil para que ela possa ser movimentada, para que ela possa fazer parte da cidade, do espaço, da comunidade). Esse traço subterrâneo da História abreviada só ganhará a superfície quase vinte anos depois, com Paris não tem fim, de 2003, livro no qual Vila-Matas declara sua filiação imaginativa com o situacionismo e sua teoria da ocupação do espaço urbano.

3) Em Suicídios exemplares, Vila-Matas cita Pessoa: "viajar, perder países" (assim como o resgate de Valéry faz pensar em um Derrida que ainda não existia, a evocação de Pessoa faz pensar em um Debord que ainda estava para nascer). Dependendo do percurso escolhido para ler a História abreviada (sempre na chave paródica, por exemplo), Valéry na epígrafe pode ser também uma evocação de Borges e do Pierre Menard: quando fala de "Borges francófobo", Juan José Saer defende a ideia de que Valéry é a figura que dá sustentação a Menard, servindo tanto de modelo quanto de alvo paródico, exaltando e dissolvendo em um mesmo movimento sua "obra visível" (assim como no Menard de Borges, portanto, a evocação de Valéry em Vila-Matas pode não ser apenas celebratória, mas carregar sub-repticiamente um aceno à vaidade dos "homens de letras"). 

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