terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Retrato

O filme Portrait de la jeune fille en feu é uma sorte de mergulho muito concentrado na sensibilidade da segunda metade do século XVIII (a sensibilidade que vai até 1789, ao menos). É a sensibilidade do Werther de Goethe, por exemplo (que é de 1774): uma palavra (deslocada ou bem-colocada) pode decidir o amor, a devoção, o ódio ou a morte. 

É também a sensibilidade de Rousseau, morto em 1778, especialmente o Rousseau que tão bem expressa a pulsão do conhecimento, o desejo de abarcar todo o mundo a partir da observação devota de uma mente independente. Essa pulsão - em paralelo à tensão afetiva, erótica - organiza muitos dos encontros das duas personagens principais de Portrait de la jeune fille en feu, aquela que retrata (Marianne) e aquela que é retratada (Héloïse): logo no início, em uma das primeiras trocas de palavras entre elas, a mulher que vive isolada em uma ilha e que recebe, sem saber, aquela que fará seu retrato, pergunta: Você trouxe algum livro? Pode me emprestar?

O tom de Héloïse denuncia ao mesmo tempo uma urgência e uma distância: seu pedido vem do fundo de uma privação terrível dos sentidos (ela já esgotou todos os poucos livros que tem à disposição na casa da família, isolada em uma ilha) e, ao mesmo tempo, guarda uma distância, uma tentativa de não mostrar a Marianne justamente o tamanho de sua privação. Esse primeiro contato, esse primeiro pedido (que é também o primeiro dom, o primeiro oferecimento), reverberá ao longo de todo filme, costurando a tal "sensibilidade da segunda metade do século XVIII" a situações concretas - primeiro de tudo as seções de pintura, mas também as conversas à beira do mar, as leituras em voz alta diante do fogo da cozinha e a estupenda cena na qual Marianne "conta", "relata" uma sinfonia de Vivaldi à sedenta Héloïse.   

Um comentário:

  1. Fico me perguntando se não virou uma tautologia literária falar sobre Werther seja como o deflagrador do romantismo alemão ou como o culpado pelo suicídio massivo de pobres jovens apaixonados encontrados com um exemplar do romance no colo ou nas mãos. Werther é um romance, parando para pensar um pouco, com matizes outros que são frequentemente reiterados pelo protagonista: o desfalecimento moral e psicológico do jovem Werther frente a uma sociedade capitalista a todo o vapor, onde os vínculos contratuais geram pavor nas "almas fracas" como Werther, na verdade um sujeito forte.. Já que aguentou tanta desforra do chefe sem lhe aplicar um murro na cara. O romance é também uma elegia à amizade. Como o tema da amizade recorrentemente aparece entre os três personagens centrais é algo a ser notado. Seja como fuga do desespero amoroso de Werther, seja como o desejo de Charlotte de que seu infeliz amigo encontre alguém que o ame e que, assim, sua amizade floresça. O marido de Charlotte é amigo de Werther. Claro, não sejamos tolos ao dizer que não se trata de uma matéria prima usasa e fielmente repetida ou argutamente modelada posteriormente pelo romantismo. Mas e o que mais? Creio que o romance é maior que o tal páthos que leva ao suicídio. Ainda que seja uma obra de juventude repleta de laivos de estupor juvenil, há toda uma psicologia do representar o ser amado de maneira patológica, os mecanismos mesmo, o motor. Enfim. Falando toda essa baboseira, belíssimo texto sobre a sensibilidade e como Goethe encaixou bem nesse texto! Creio que Werther é uma prova cabal de como Freud acertou ao formular sua segunda teoria pulsional que vai de fato muito além do princípio do prazer.

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